...ELIZABETH...
Só de falar, senti a náusea subir novamente. Aqueles rostos me assombravam até na luz do dia. Ela assentiu em silêncio, como se carregasse comigo um pouco daquele peso.
— Eu sei, amiga. Eu percebo. Você não está bem, por isso estou aqui. Sempre vou estar. Nunca se esqueça disso. Eu te amo. Sou sua irmã de alma, sua melhor amiga.
Martina me soltou do abraço devagar, os dedos afagando meus cabelos como quem diz: Você ainda está aqui, e não está sozinha.
Martina conhece cada pedaço da minha história. Crescemos lado a lado, dividindo muros, segredos e silêncios. Fomos vizinhas, colegas de escola, cúmplices desde os primeiros tropeços da infância. Ela sempre esteve ali, como irmã, como mãe, como tudo que eu nunca tive e sempre precisei.
— Você precisa vir morar comigo — ela disse com a firmeza de quem já decidiu por nós duas.
— Eu sei que você ainda não quer deixar esse lugar. Mas eu vou esperar. O tempo que for necessário. Quando você sentir que é hora de sair daqui, de recomeçar, vai saber que tem pra onde ir. Eu vou estar lá.
Houve tanta sinceridade em sua voz que tudo o que consegui fazer foi sorrir, um sorriso cansado, mas genuíno.
— Obrigada.
— Você pode ficar aqui hoje à noite? pedi, como quem pede abrigo de uma tempestade invisível.
— Essa casa, à noite ela me assusta um pouco.
Ela assentiu sem pensar duas vezes.
— Claro, que sim. Já te falei que essa casa tem algo esquisito. Se durante o dia já dá arrepios, imagina a noite.
Sorri, aliviada.
Mas, como sempre acontece quando o momento parece tranquilo demais, a realidade voltou a bater à porta, ou melhor, ao celular dela, que começou a vibrar. Ela atendeu, e suspirou fundo.
— Merda, é meu gerente.
— Problema? — perguntei, já conhecendo a resposta pelo tom da voz.
— Disse que eu preciso estar lá às oito. Ou seja, tenho que ir agora. Não vai dar pra ficar com você hoje. — Ela me olhou com pesar, como se estivesse me traindo de alguma forma.
Tentei disfarçar a frustração.
— Tá tudo bem. Vai trabalhar tranquila. Eu fico bem sozinha, de verdade.
— Tem certeza? Esse lugar é meio... estranho. E eu me preocupo com você.
— Certeza.
Ela ainda hesitou, os olhos vagando pela sala como se pressentisse algo que nem eu via.
— Qualquer coisa, me liga, tá bom? Sem vergonha, sem pensar duas vezes. Eu venho na hora. Ou chamo a polícia, se for preciso.
Dei um sorriso com a preocupação exagerada, mas não disse nada. Era bom saber que alguém se importava tanto assim.
Antes de guardar o celular, ela deu uma risadinha e olhou para a tela.
— Ah. O Jhonatan me mandou uma mensagem agora. Vai rolar um cassino hoje à noite, depois do expediente. Vai ser chique, parece que vai ter até gente famosa.
Levantei uma sobrancelha.
— E você tá pensando em ir?
— Pensando? Eu já tô dentro! E pensei em te levar comigo. Passo aqui depois do trabalho, te busco, e você passa a noite lá no meu apê. Assim não precisa dormir sozinha. O que acha?
— Não sei, Martina. Não vai ser muito tarde? E esses lugares cheios de gente rica "metida", nunca foram minha vibe.
Ela revirou os olhos, teatral.
— Ah, por favor, Elizabeth! Desde quando você se importa com isso? Vai que você conhece um milionário lindo, gostoso e educado? Se apaixona, transa e ainda me arrasta junto pra uma vida de luxo?
Ri da sua empolgação, balançando a cabeça.
— Você vive num filme, Martina.
— E você vive trancada num drama sem fim! Vamos, amiga, você precisa se libertar! Vai continuar virgem até quando? 19 anos e ainda presa naquele Henry que só te machucou. Você merece mais. Merece viver. Experimentar o que é prazer de verdade. Conhecer alguém que te faça sentir viva.
Suspirei, derrotada pelo entusiasmo dela e por um pedaço de mim que queria, secretamente, acreditar em cada palavra.
— Tá bom, Martina. Eu vou. É sério, me convenceu.
Ela bateu palmas como uma criança animada.
— Assim que eu gosto de ouvir! Se arruma bem gata porque hoje é dia de sorte! Ebaaa! Vai ser incrível! Ai, eu tô tão animada! — Martina vibrou, como se estivesse realizando um sonho dela. Ri e fiz uma careta, pedindo silêncio, mas ela, como sempre, ignorou.
Depois da nossa conversa, jantamos. Mas então o relógio correu demais, como sempre faz quando estamos com quem gostamos. Era hora dela ir.
Martina precisava trabalhar. O gerente tinha ligado de última hora pedindo que ela cobrisse o expediente. Se recusasse, podia perder o emprego. E ela não queria isso. O salário era excelente, e o clube noturno onde trabalhava era famoso entre os ricos de Nova York.
O curioso era que ninguém nunca tinha visto o dono do lugar. Nem mesmo ela.
Diziam que era um homem poderoso e influente, mas recluso. Martina até ouviu uma vez o gerente comentar que "Ele tem seus próprios motivos para nunca aparecer.” Aquilo me intrigava. Quem era esse homem tão misterioso?
— Tchau, amiga. — Martina me abraçou forte, e beijou minha bochecha.
— Tchau — respondi com um sorriso discreto, tentando esconder a saudade precoce.
— Não esquece! Hoje à noite, cassino! Venho te buscar! — ela avisou com empolgação.
— Hoje é o dia que você desencalha! Vai encontrar um gostosão daqueles, que te vire do avesso na cama. Dizem que vai ter vários por lá!
— Martina. — protestei, constrangida, olhando em volta.
— Ah, qual é, amiga? Você precisa perder essa virgindade. Fala sério! — ela gritou, rindo alto.
Olhei em direção às árvores ao redor da casa, meio preocupada que meu vizinho pudesse ouvir. A lembrança do rosto dele me encarando pela janela às 6 da manhã ainda me dava calafrios. Tive a nítida impressão de que ele queria, me fazer mal.
— Não tem ninguém aqui! Você mora no meio do mato. — ela zombou, apontando para a floresta. Não pude deixar de rir, concordando. — Nisso você tem razão.
E num instante, o carro dela arrancou, deixando para trás apenas fumaça, e pneus cantando.
Finalmente sozinha em casa, tranquei a porta com mãos trêmulas. Girei a chave duas vezes e encostei as costas na madeira fria, como se ela fosse a última barreira entre mim e algo... invisível.
Olhei para os lados, o coração ainda inquieto. Nenhum sinal do vizinho, aquele desconhecido de olhos vazios que sempre parece me observar como uma presa distraída. O silêncio era espesso, desconfortável.
Fechei todas as janelas.
Não por causa do frio.
Mas porque escureceu, e à noite, essa casa parece se transformar.
Subi para o quarto com passos cuidadosos, como se o próprio chão pudesse me entregar. No banheiro, me despi com pressa e liguei o chuveiro.
A água quente começou a escorrer, mas não trouxe consolo. O vapor tomou conta do espaço, cobrindo tudo como uma névoa sufocante. Enquanto ensaboava os cabelos, ouvi.
Um estalo. Pequeno.
Parecia vir de dentro.
Parei. Prendi a respiração.
— Quem está aí?, sussurrei, a voz tremendo, mal audível sobre o barulho da água. Nenhuma resposta. Só o eco do meu medo.
Um vento gelado atravessou o banheiro. A pequena janela entreaberta deixava o ar invadir como dedos invisíveis tocando minha pele nua. Fechei-a com força, o coração em descompasso, e terminei o banho apressadamente. Queria sair dali. Como se houvesse algo no ar, algo que me vigiava. Algo, que sabia onde eu estava.
Enrolei-me na toalha e caminhei até o closet. Cada passo parecia mais pesado que o anterior. Vesti uma lingerie vermelha, sentindo meu corpo exposto demais, vulnerável. Aquela sensação de estar sendo observada continuava.
— Se tem alguém aqui, sai agora! Eu tenho uma arma! Não pense que sou frágil! Eu não sou aquela garotinha indefesa de antes! — gritei, a voz desesperada, os olhos varrendo o quarto. — Se você me tocar, eu arranco sua pele com as próprias mãos, seu desgraçado!
O silêncio que veio em seguida foi pior que qualquer resposta. Senti o estômago revirar. Vesti o pijama às pressas e me encolhi na cama, como uma criança aterrorizada. Só que, ao contrário das crianças, eu sabia que os monstros existem.
Fechei os olhos tentando escapar mas os fantasmas da minha mente sempre me encontram. E eles têm nome. E rosto.
Minha mãe.
Jacob.
O pesadelo chamado lar.
Ele era um demônio disfarçado de homem. Sempre drogado, sempre bêbado. Voltava para casa com os olhos injetados de raiva e prazer doentio. Me batia. Tentava me tocar. E minha mãe? Assistia de longe. Calada. Cúmplice. Achando divertido.
Ela nunca me protegeu.
Nunca me escolheu.
Ela o escolheu.
O homem que tentou me estuprar. Que quebrou minha infância como se esmagasse uma boneca de porcelana. Ela o abraçava, o acolhia, como se eu fosse a intrusa. A exagerada. A mentirosa.
E meu pai? Um fantasma. Desapareceu quando eu mais precisei. Um covarde que me deixou à mercê de um maníaco e de uma mulher que chamou isso de família.
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Atualizado até capítulo 35
Comments
Luciana Souza
pra é o primeiro namorado dela
2024-09-10
0
Neide Cosmo
meu Deus quem será ele?
2024-09-03
0
Luana Mddm
😔😔😔
2024-09-02
0