...ELIZABETH ...
— Ôôô, acorda, senhorita! Volta pra Terra, sai de Marte! — ouvi a voz da Martina me puxando bruscamente de volta à realidade.
As lembranças com Henry tinham me engolido por um momento. Beijos esquecidos, promessas, tudo isso enterrado bem fundo, em algum lugar que ele, provavelmente, já nem se lembra mais. Enquanto eu tola... ainda lembrava.
— Ou talvez o problema seja essa sua casa — ela continuou, olhando ao redor com desprezo. — Parece mal-assombrada. Madeira podre, rangendo como se fosse cair aos pedaços.
— Não fala mal da minha casa — rebati, cruzando os braços.
— Ei, qual é, gata? Eu só tô sendo sincera — respondeu, tragando fundo e soltando a fumaça quase no meu rosto.
Murmurei, mais pra mim mesma do que pra ela: Eu sei o que vi. Meu pai, ele precisa de ajuda. E ela nunca vai entender isso.
— Você devia se mudar. Vem morar comigo em Queens — ela insistiu, tocando minha mão com carinho. — Por favor, amiga.
Balancei a cabeça em negação. Havia algo nessa casa, algo que me prendia. Algo que me chamava. Eu não pretendia ir embora tão cedo.
— Não, Martina. A gente já conversou sobre isso.
— Por quê não? Ah, que chata! Mas eu vou continuar insistindo — ela disse, fazendo bico.
Sorri.
— Eu gosto daqui.
— Aham... Finjo que acredito! E a faca que você tava segurando mais cedo, gata? Você acha que isso é normal? Você não tá segura aqui. Essa casa tá te deixando assim, vendo coisas, ouvindo coisas.
Ela falava, e eu apenas me calei. Peguei o cigarro da mão dela e dei uma tragada.
— Heeey! Isso é meu, tá bom? Ladra — ela reclamou, mas ria.
— Tava com vontade de fumar — respondi, soltando a fumaça devagar, sentindo o gosto amargo do alívio momentâneo.
— E precisava roubar de mim? — Ela riu, e eu ri junto.
— Tava com saudade — confessei. — Sem você aqui, não tem graça.
Martina se aproximou, e me abraçou forte.
— Eu também! Te amo tanto. Senti sua falta, por isso vim te ver tão cedo, sem avisar. Queria te surpreender, só não imaginei que ia te assustar desse jeito.
Sorri com carinho.
— Por isso você precisa vir morar comigo, fugir desse lugar.
— Podemos mudar de assunto? — pedi, mais séria. — Eu gosto da minha privacidade. Eu gosto da paz que essa casa me dá.
— Paz? — ela repetiu, soltando uma risada seca.
— Você tá de brincadeira, né? Desde quando uma casa que parece cenário de filme de terror te traz paz? — Ela se aproximou, olhando nos meus olhos com um meio sorriso, sombrio, quase cruel.
— Isso aqui não tem nada de paz. Tem cheiro de coisa morta. Mas tudo bem... Depois, não diga que eu não te avisei.
Sorri de novo.
— Mas o que você realmente veio fazer aqui, Martina?
Ela abriu um sorriso largo e, como num passe de mágica, tirou uma garrafa de vinho da bolsa, junto com duas taças.
— Vim ver minha melhor amiga, e sabe por quê? — disse, toda animada. — Porque hoje a gente vai beber, dançar e esquecer os fantasmas! Vambora, gata!
Ela girou os quadris, jogou o cabelo, desceu até o chão dançando como se estivesse no meio de uma festa, completamente livre, exagerada.
Ri alto, achando graça daquilo tudo. Martina era o completo oposto de mim: Ela era barulho, cor e fogo. Eu, silêncio, sombra e espera.
— Vem dançar, doida! Tá esperando o quê? Toma sua bebida aqui! — Ela encheu minha taça e me entregou.
Aceitei. Talvez, só por essa noite, eu deixasse a dor esperar.
— Obrigada, viu? — murmurei entre risos trêmulos, o coração leve, como se as palavras dançassem na minha boca. Ri, com aquela liberdade rara que só existe entre quem se ama de verdade.
Martina ligou o alto-falante, e logo a cozinha se inundou com nossas músicas favoritas. Aquelas que sabiam exatamente onde tocar.
— Ihull! Essa é perfeita!
— Dança, gata! Se diverte!
Ela gritou, e eu fui junto, sem hesitar. Meu corpo se entregou ao ritmo, ao vinho, à alegria quase insana de estar viva naquela noite. Sem pensar, percebi a taça vazia na minha mão, já não havia mais vinho, nem freio.
Dançávamos como se o tempo não existisse. Nossos quadris acompanhavam a batida, e nossas risadas ecoavam como sinos num templo profano. Éramos um casal naquela pista imaginária, criadas por nossas próprias mãos e ilusões.
Bebi mais. Mais do que devia. E num impulso febril, tirei a blusa, ficando só de sutiã, como se aquilo pudesse aliviar o calor que nascia de dentro, uma chama que vinha da alma.
—Tá quente aqui, né amiga?— gritei, ofegante.
— Quente demais! Além dessa sua casa ser amaldiçoada, ela é um inferno. Caramba! — ela disse, rindo e atordoada.
Soltei uma gargalhada como quem rompe um feitiço antigo. Caminhei trôpega até a garrafa, como se ela fosse uma tábua de salvação. Bebi, até a última gota, como quem quer apagar a dor com vinho.
Apoiei-me no balcão, rindo com gosto. Minha visão já começava a apagar nas bordas. Tudo girava, mas não importava. Ali, naquele instante, a bebida era um abraço quente que me fazia esquecer.
Do passado.
De quem eu era.
Da minha tristeza.
— Essa música... ah, eu amo essa banda. — murmurei, antes de berrar o refrão como se fosse um grito de libertação:
— Coming down
One love, two mouths
One love, one house...
A voz falhava, mas o coração seguia firme:
— No shirt, no blouse
Just us—you find out...
— Cause it’s too cold
For you here
And now—so let me hold
Both your hands in the holes of my sweater...
— Já deu, baby. Você tá gritando, não cantando!— ela disse, com um sorriso nos olhos.
— Dane-se! Eu posso gritar pro universo inteiro!
A música explodia em nossos ouvidos. Eu gritava, cantava, tropeçava, e Martina me segurava, meio rindo, meio tonta também.
— Você tá muito bêbada — ela comentou, quando eu caí em seu colo. Sorri, sentindo o mundo desaparecer aos poucos.
Acordei jogada no sofá, com um enjoo que parecia tomar conta de cada célula do meu corpo. O estômago embrulhado, a boca seca, e uma dor de cabeça latejante que fazia o mundo girar devagar.
Tentei me sentar, e só então percebi: Estava sem a parte de cima, usando apenas um sutiã, quase transparente, que mal cobria meus seios.
Arregalei os olhos, o pânico me atravessando como uma lâmina.
Droga, vou vomitar, sussurrei, tropeçando até o banheiro mais próximo. Me ajoelhei e vomitei todo o vinho, sentindo a alma sair junto.
Com o estômago vazio, a fome surgiu com fúria. Eu precisava comer alguma coisa, qualquer coisa. Ainda trôpega, me arrastei até a cozinha, e lá estava Martina, como um anjo mundano, mexendo panelas no fogão. O cheiro de comida quente, batatas, arroz, legumes, frango, era um abraço reconfortante.
— Uau, você sabe mesmo cozinhar! — exclamei com um sorriso fraco.
Ela se virou, me envolveu num abraço e deixou um beijo leve na minha bochecha.
— Como você está? Melhor depois de beber quase uma garrafa inteira sozinha?
— Um pouco, ainda meio tonta. Mas com muita fome.
Ela riu, satisfeita com minha resposta.
— Perfeito. Porque acabei de preparar nosso jantar.
— Jantar? — Arregalei os olhos. Já era noite? Eu dormi o dia inteiro?
— Sim. Você apagou o dia todo. Deu até tempo de eu dar um jeito nessa casa que parecia abandonada. Joguei aqueles quadros horríveis fora e coloquei flores rosas no vaso da cozinha. Ficou lindo, né. Depois tomei banho, fiz umas comprinhas e voltei pra esse fim de mundo. E sabe o que é pior? Quando cheguei, você ainda tava dormindo. Resolvi fazer algo pra comermos. Tinha certeza que você ia acordar morrendo de fome.
Ela falou tudo de um fôlego só, e eu ri.
— Caramba, amiga, eu nem sei o que dizer. Obrigada.
Abracei-a de novo, sentindo a ternura no seu sorriso.
— Não tem por que agradecer, baby. Vi que sua geladeira tava vazia. Comprei umas coisas, espero que goste.
— Não precisava.
— Claro que precisava. — ela rebateu, e rimos juntas.
Mas então, seu tom mudou.
— Você sabe que pode confiar em mim. Quando cheguei, você estava se debatendo no sofá, gritava por seu pai. — A voz dela falhou, e seus olhos marejaram.
— Me desculpa por não ter acreditado antes, por ter debochado. Eu sinto muito. Você precisa voltar pra terapia, estou preocupada com você.
Fiquei em silêncio. A pergunta dela me atravessou como um trovão calado.
Senti o nó na garganta apertar. O olhar dela estava cheio de dor, de cuidado.
Não resisti: Abracei Martina com força, como quem busca abrigo.
— Obrigada. Os pesadelos não vão embora. Não importa o quanto eu tente. Fiz terapia, sim, tentei de tudo. Mas meu pai continua voltando. Ele aparece sempre. E não é só ele. O Jacob também. E é claro, minha mãe.
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Atualizado até capítulo 35
Comments
Luciana Souza
com certeza a amiga sabia que,a bebida foi
batizada
2024-09-10
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