...ELIZABETH ...
Seu olhar encontrou o meu através do espelho, e sua boca se moveu sem som. Palavras mudas, mas desesperadas.
Aproximei-me. Minha respiração ficou presa na garganta.
E então ouvi. Desta vez, a voz dele veio de dentro do espelho, como se atravessasse outra dimensão para me alcançar:
— Filha... Me ajude... Antes que ele me mate!
— Ele quem? — Mas antes que eu dissesse qualquer coisa, algo se moveu dentro do espelho. Uma sombra.
Alta. Distorcida. Como um vulto humano coberto por névoa escura. Surgiu atrás de meu pai no reflexo.
Ele virou-se, apavorado. E num instante, sua imagem foi engolida pela escuridão.
O espelho trincou com um som seco.
Dei um passo para trás, o celular quase caindo da minha mão.
A última coisa que ouvi, antes do silêncio engolir o sótão de novo, foi uma única palavra sussurrada entre as rachaduras do vidro:
— Procure-me!
Fiquei paralisada. As vozes, ver meu pai ali, preso no espelho. Meu coração martelava dentro do peito, acelerado, violento, como se quisesse escapar, como se fosse um aviso.
Não.
Era um aviso.
Os sonhos. As visões. Tudo fazia sentido agora. Era ele. Ele estava tentando me alcançar. Pedindo ajuda.
Meu pai estava em perigo.
Desci correndo a escada de madeira do sótão, os degraus rangendo sob meus pés trêmulos. Fui direto para a cozinha, em busca de ar. Precisava respirar. Pensar.
Mas assim que encostei no balcão, desabei.
Chorei.
Chorei por tudo que guardei por anos: a saudade, a ausência, a dor de não ter tido a chance de abraçá-lo, de dizer o quanto sentia sua falta, do quanto o amava.
E agora, ele precisava de mim, e eu não podia tocá-lo.
Minhas lágrimas mal haviam secado quando o som voltou.
Batidas na porta.
Secas. Rítmicas. Insistentes.
A faca ainda estava nas minhas mãos.
Molhada de suor, escorregando dos dedos.
— Se for alguém... Eu... Eu mato. Juro que mato. Pensei, tomada por um medo que se misturava à adrenalina.
Pingando de suor, respirei fundo e me aproximei da porta, encostando o corpo contra ela. O trinco gelado sob meus dedos.
— Quem é? — perguntei com a voz embargada.
Espiei pelo olho mágico.
Arregalei os olhos.
Era Martina. Minha melhor amiga.
— Sou eu! Sua melhor amiga surtada! — gritou do outro lado. — Abre essa porta, louca!
Ela batia como se estivesse prestes a derrubá-la.
Meu corpo cedeu ao alívio. Suspirei alto, como se soltasse o peso de mil pedras. Por um instante, pensei que fosse aquele vizinho estranho me encarando outra vez.
Destranquei a porta e abri.
Martina entrou como um furacão, já com um cigarro aceso entre os dedos, tragando com a calma de quem vive em outro mundo.
— Que droga tá acontecendo aqui? — perguntou, os olhos percorrendo cada canto da casa. — Você parece ter visto um fantasma.
— E isso aqui parece uma casa assombrada. — ela disse, com nojo na voz, soltando a fumaça devagar, como se quisesse envenenar o ar ao meu redor. — Essas paredes esquisitas, esses quadros deformados. Que horror.
Forcei um sorriso.
— Então você veio aqui só pra criticar a casa que eu aluguei? E às 6 da manhã? — minha voz saiu baixa, mas firme. Esperava alguma explicação, mas tudo o que recebi foi aquele olhar de julgamento disfarçado de preocupação.
— Gata, fala sério... Isso aqui tá mais pra cenário de filme de terror. Que lugar é esse? Você alugou porque era o único que cabia no seu orçamento, né? No fim do mundo, ainda por cima! Você tem noção do tempo que levei dirigindo até aqui?
Ela esperava uma resposta como quem espera a queda de alguém já machucado. Respirei fundo, contendo o nó que se formava na garganta.
— Ok, Martina... Podemos mudar de assunto? — minha voz agora soava mais trêmula. — Você arrombou minha porta às 6 da manhã. Nem me avisou que vinha. Eu quase chamei a polícia... por um momento, achei que fosse alguém tentando me matar.
Minha mão tremia. A lembrança do que eu tinha acabado de ver ainda ecoava dentro de mim, meu pai, no sótão, pedindo socorro, como um fantasma agarrado a uma lembrança que se recusa a morrer.
Ela soltou uma risada seca, debochada, como se tudo fosse uma piada mal contada.
— Eu percebi mesmo. Você ainda tá segurando uma faca — disse, apontando com o queixo. — Relaxa, gata. Não sou uma serial killer.
Olhei para minha mão. A faca ainda estava ali, apertada entre os dedos. Eu nem tinha notado. Soltei-a com um baque leve no balcão da cozinha, envergonhada.
— Desculpa, amiga. Eu... Eu não percebi. — Tentei sorrir, mas tudo parecia errado.
Ela deu um sorrisinho breve, mas havia algo cruel por trás dele.
— Olha... Eu sei o que você passou. O sumiço do seu pai. Sua mãe presa naquele casamento com aquele traste alcoólatra. Mas você precisa deixar isso pra trás. Precisa viver.
Ela parou por um segundo. E eu me perguntei se ela estava tentando ajudar ou apenas reforçar o quanto eu estava quebrada.
— Você devia voltar pra terapia. Lembro que você estava melhorando. Agora... Parece assustada o tempo todo. E nem quer mais sair de casa. Eu fico preocupada, sabia? Principalmente depois daquele Henry nojento.
Henry. A ferida antiga ainda aberta.
— Você precisa recomeçar. Esquecer ele.
Fiquei em silêncio.
As lembranças voltaram como uma onda gelada: Henry e seu sorriso, suas promessas, suas mentiras. Meu primeiro amor. Meu primeiro abandono.
Eu só queria ser amada. Só isso.
— Você tem razão... Eu preciso esquecer — murmurei, mais pra mim mesma do que pra ela.
— Você não tem ideia do que aconteceu. Eu, eu vi meu pai. No sótão. Ele estava lá, me chamando, pedindo ajuda. Como se ainda estivesse preso em algum lugar. Como se estivesse... sofrendo.
Minha voz falhou no fim. Os olhos marejaram.
Martina me olhou por um segundo, e então riu. Não de nervoso. Não por empatia. Riu como quem zomba.
— Qual é a graça? — perguntei, chocada.
— Você tá falando sério? Mais um dos seus sonhos malucos? É isso? Ah, amiga... Fala sério!
— Como assim? — minha voz saiu dura. Doía ver o escárnio dela onde eu buscava consolo.
— Você assiste filme de terror demais. Acorda. Seu pai te abandonou. Sumiu. Acabou. Se ele se importasse, teria ficado. Eu só tô sendo realista.
Ela tragou mais uma vez, como se cada palavra dela fosse uma sentença.
Fechei os olhos. Balancei a cabeça. A dor ali não era só pela lembrança do meu pai. Era por perceber, mais uma vez, que mesmo entre os vivos, eu estava sozinha.
Naquele instante, as lembranças de Henry também vieram à tona. Como se não bastasse a dor de pensar no meu pai, agora era ele, mais uma ferida aberta. Era sofrimento demais, tudo se acumulando dentro de mim.
Me lembro como se fosse hoje: Risos leves escapavam de mim enquanto Henry contava mais uma de suas piadas sem graça, aquelas que só faziam sentido no universo onde só nós dois existíamos.
— E aí o pato virou pra galinha e disse: “Você precisa botar mais fé em mim!” — ele concluiu, com um sorriso bobo no rosto, esperando minha reação.
— Meu Deus, Henry... Isso foi péssimo — falei entre gargalhadas, encostando de leve no braço dele.
— Mas você riu — retrucou, vitorioso, com aquele brilho nos olhos que sempre me desmontava.
Caminhávamos de mãos dadas, cada um com um sorvete na outra mão. O meu era de baunilha, o dele de chocolate. Quando vi que o dele estava quase derretendo, levei o meu até a boca dele, oferecendo a pontinha.
— Quer provar o melhor sabor do mundo? — perguntei, sorrindo.
Ele deu uma mordida exagerada no sorvete e, com um olhar travesso, passou de leve a parte do chocolate derretido no meu nariz.
— Henry! — protestei, tentando parecer brava, mas o riso escapou antes que eu pudesse fingir qualquer coisa.
— Agora sim, você tá uma delícia — disse ele, rindo alto.
Enxuguei o nariz com a manga da blusa e o empurrei de leve. A risada dele era alta e livre, e a minha acompanhava, sincera, leve, como se nada de ruim pudesse acontecer enquanto ele estivesse ali.
Foi então que ele parou, de repente, e apontou para um casal com uma criança pequena andando de bicicleta. Os dois pais andavam lado a lado, enquanto o menino pedalava entre eles, rindo com os braços abertos, como se voasse.
— Tá vendo ali? — Henry disse, apontando com o queixo. — Seremos nós daqui a uns anos. Você, eu... e um pestinha desse tamanho correndo por aí.
Ri, surpresa com a ideia, mas ao mesmo tempo tocada.
— Ah, é? Já tá me colocando em planos de longo prazo, hein? — brinquei, provocando.
— Sempre estive, você só não sabia ainda — respondeu ele, agora mais sério, os olhos fixos nos meus. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele se aproximou e me beijou. Foi um beijo doce, com gosto de sorvete, de tarde quente, de promessas que ainda não tinham sido quebradas. Eu retribuí entre risos, o coração leve, quase flutuando.
Naquele instante, tudo parecia certo.
Eu estava feliz. Realmente feliz.
Foi só muito depois, quando descobri a traição, que percebi como a dor só é tão profunda porque a felicidade foi real. Porque eu amei de verdade.
E ele também... ou pelo menos fingiu bem.
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Atualizado até capítulo 35
Comments
Luciana Souza
mas cadê o grande amor pra ela
2024-09-10
1
Neide Cosmo
sua história é muito boa autora
2024-09-03
1