📐 Capítulo 5 — O Peso dos Segredos
A madrugada avançava sem pressa, enquanto o som da chuva martelava o telhado do casarão como se fosse um lembrete de que o tempo não perdoa segredos. Clara estava sentada no chão, rodeada por cartas, documentos, e o diário da bisavó aberto sobre as pernas. As palavras escritas ali pareciam respirar, pulsar, como se quisessem saltar da página direto para sua garganta.
Miguel observava em silêncio, encostado na porta do antigo escritório. Os olhos dele carregavam o cansaço dos últimos dias: noites mal dormidas, brigas abafadas, silêncios que diziam mais do que qualquer discussão. Mas ali, naquele instante, ele sabia que precisava estar inteiro para Clara.
— Você não dorme faz quantas horas? — perguntou ele, quebrando o silêncio com uma voz baixa, quase um sussurro.
— Nem sei mais — respondeu Clara, sem desviar os olhos das páginas. — Sabe o que é pior? Ler essas palavras e sentir que não conheço minha própria história.
Miguel entrou, sentou-se ao lado dela. Pegou uma das cartas que estavam empilhadas ao redor.
— Isso aqui — disse ele, levantando o papel — pode ser nossa única chance de reverter tudo. Mas também pode abrir feridas que ninguém quer encarar.
Clara fechou o diário devagar, respirou fundo.
— Já não importa mais. A ferida já tá aberta, Miguel. O que eu mais temia aconteceu: minha família virou munição pra quem quer me derrubar.
Ele segurou a mão dela, apertou de leve.
— Você não tá sozinha nisso.
Ela forçou um sorriso, cansada. Os olhos dela se desviaram para a janela, onde a chuva engrossava.
— Samuel vai usar tudo contra mim. Ele sabe de coisas que nem eu sei.
Miguel passou os dedos pela testa, massageando a tensão.
— E Raul tá com ele. Esse desgraçado tá doido pra ver a gente cair.
Clara balançou a cabeça, como quem tenta expulsar pensamentos ruins.
— Preciso falar com Dona Cecília de novo. Ela sabe mais do que contou. Eu senti nos olhos dela.
Miguel concordou.
— Quer que eu vá com você?
Ela respirou fundo.
— Preciso ir sozinha. É minha história. É minha guerra.
Na manhã seguinte, Clara bateu à porta da casa de Dona Cecília. A senhora, já esperando por ela, abriu um sorriso triste.
— Eu sabia que você voltaria, menina.
Clara entrou, sentindo o cheiro de madeira antiga e chá de ervas.
— Dona Cecília, o que mais a senhora não me contou?
A mulher sentou-se devagar numa poltrona gasta, apontando para uma caixa de madeira ao lado.
— Eu guardei isso por anos. Prometi que só entregaria a você quando fosse forte o bastante pra entender.
Clara se aproximou, abriu a caixa. Dentro, mais cartas, fotos, recibos de compra e venda de terras. Mas o que chamou sua atenção foi um envelope lacrado, com a caligrafia do pai.
— Isso é do meu pai?
Dona Cecília assentiu.
— Ele sabia que, cedo ou tarde, alguém tentaria apagar tudo de novo.
Clara segurou o envelope como se fosse vidro prestes a estilhaçar.
— Por que ele nunca me contou nada disso?
Dona Cecília respirou fundo.
— Ele tentou te proteger. Mas a verdade é que algumas heranças não são de tijolo e cimento, são de sangue e silêncio.
Clara sentiu as lágrimas queimarem os olhos. Segurou. Não choraria na frente dela.
— Obrigada, Dona Cecília. Eu vou consertar isso. Nem que seja a última coisa que eu faça.
Quando voltou ao casarão, Miguel a esperava no portão. O rosto dele era um misto de alívio e preocupação.
— Conseguiu alguma coisa?
Ela levantou o envelope, ainda lacrado.
— Isso pode ser nossa bala de prata. Mas eu tô com medo do que vou encontrar aqui dentro.
— Quer abrir agora?
Ela respirou fundo, olhou para a estrutura do casarão, como se o prédio fosse testemunha silenciosa daquele momento.
— Aqui dentro — disse ela. — É aqui que tudo começou, é aqui que tudo vai acabar.
Sentaram-se no escritório outra vez. Clara abriu o envelope com cuidado. Dentro, uma carta escrita à mão e uma certidão antiga.
Miguel leu junto com ela, as palavras revelando uma verdade que misturava alívio e desespero.
“Filha, se um dia precisar lutar por isso, saiba que sua avó não foi deserdada — ela cedeu voluntariamente para salvar a família de uma falência certa. Mas o acordo foi sujo, assinado sob pressão. Guardei tudo, porque sabia que o sangue cobra dívidas que o papel não paga.”
Miguel largou a carta, esfregando o rosto.
— Isso explica tudo. O que Samuel tem é fachada. A posse é sua por direito.
Clara balançou a cabeça.
— Sim. Mas provar isso vai ser um inferno.
Miguel segurou o rosto dela entre as mãos.
— Então a gente vai pro inferno junto.
Ela sorriu, dessa vez com lágrimas caindo.
Os dias seguintes foram uma corrida contra o tempo. Advogados revisaram cada documento, enquanto Raul e Samuel apertavam o cerco. O embargo à obra veio como um soco — operários pararam de trabalhar, caminhões ficaram presos na entrada.
Num fim de tarde, Raul apareceu, debochado, no meio do pátio agora silencioso.
— Vai ser mais fácil se desistirem agora — disse ele, voz venenosa. — Vocês não vão conseguir sustentar essa farsa.
Clara foi quem deu um passo à frente, o olhar como uma lâmina.
— Não é farsa, Raul. É verdade. E a verdade não precisa de licença pra existir.
Raul sorriu, irritante.
— Vamos ver se a justiça pensa assim.
Quando ele saiu, Miguel olhou para Clara.
— Tem certeza de que quer continuar?
— Se eu parar agora, não sou mais eu — respondeu ela. — Esse lugar é minha história. E eu não vou enterrar quem fui só porque eles querem.
Numa noite chuvosa, Clara e Miguel sentaram-se juntos no canteiro vazio. Um lampião improvisado iluminava rostos cansados, mãos dadas como promessa de que, apesar de tudo, eles ainda eram um.
— Você acha que a gente aguenta? — perguntou ela, a voz quase um sussurro.
— Eu aguento se você aguentar — disse ele, encostando a testa na dela. — Não importa o que Samuel faça. Nem Raul. Nem ninguém.
No silêncio pesado, Clara sentiu que, pela primeira vez em muito tempo, não estava sozinha no peso dos segredos.
E mesmo que o casarão desabasse ao redor, eles ainda teriam algo que ninguém poderia embargar: o amor teimoso, construído entre cacos de passado e promessas de futuro.
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Atualizado até capítulo 39
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