📐 Capítulo 3 — Rachaduras Invisíveis
O casarão respirava o calor de uma tarde abafada. O barulho dos operários se misturava ao zunido das furadeiras, à batida de marretas e a risadas abafadas. Mas no canto lateral, perto do muro coberto de hera morta, reinava outro tipo de silêncio. Clara estava ali, com as costas encostadas na parede, observando Raul Menezes folhear a prancheta como quem esconde cartas de baralho.
Ela respirou fundo, tentando controlar o impulso de arrancar a pasta das mãos dele.
— Raul, eu revisei tudo ontem à noite. Esses números não fecham — disse, firme, cruzando os braços. — Não sou estagiária. Você não vai empurrar material de segunda e cobrar preço de primeira.
Raul ergueu os olhos, um sorriso cínico brincando no canto da boca.
— Ribeiro, você é boa com plantas velhas. Fica com as paredes caindo. Deixa o resto pra quem entende de orçamento.
Ela avançou um passo. O cheiro de tinta fresca, suor e pó de cimento se misturava no ar pesado.
— Eu entendo de cada centímetro deste lugar. Entendo o suficiente pra saber quando alguém quer morder mais do que deve.
Raul soltou uma risada curta.
— Você tá se achando demais, arquiteta. Isso aqui não é faculdade. É canteiro de obra. Quem manda sou eu.
Uma voz cortou o ar antes que Clara respondesse.
— E quem paga é ela. Então quem manda é ela.
Miguel surgiu atrás de Raul, os braços cruzados, o rosto sombreado pelo boné sujo de poeira. Ele parou tão perto que Raul precisou dar meio passo pra trás.
— Tem algum problema, Raul? — perguntou Miguel, como quem pergunta se quer café ou chá, mas os olhos diziam outra coisa.
Raul engolou em seco.
— Nenhum problema, Brandão. Só acertando detalhes.
— Ótimo. — Miguel virou-se para Clara. — Precisa de ajuda pra acertar mais alguma coisa?
Ela sustentou o olhar dele. Sabia que entre eles havia coisas que ninguém mais precisava ouvir, mas ali, no meio da poeira e da tensão, eram só arquitetos tentando salvar uma ruína — e se salvar junto.
— Tá resolvido — disse Clara, seca. — Por enquanto.
Raul se afastou, mas não sem antes lançar um último olhar, um aviso. Clara sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha.
Quando Raul sumiu de vista, Miguel se aproximou mais. O tom de voz dele baixou, como se falasse só para as vigas velhas escutarem.
— Ele tá te passando pra trás, Clara. Desde o início.
Ela bufou, apertando a prancheta contra o peito.
— Eu sei. Mas preciso de provas. Se eu tiro ele agora, a obra para. Não posso parar.
Miguel franziu o cenho.
— Não precisa bancar a mártir sozinha.
Ela ergueu o rosto, encarou-o. O cheiro dele era cimento, suor e café frio.
— E você vai fazer o quê? Quebrar a cara dele?
Ele sorriu, um sorriso que não chegava aos olhos.
— Se for preciso.
Ela deu um passo atrás, forçando um limite invisível.
— Isso não é só sobre ele, Brandão. Tem coisa maior aqui. Você sabe.
Miguel a fitou por um momento longo, pesado. Queria perguntar mais, mas não perguntou. Ao invés disso, passou por ela, roçando o ombro no dela, deixando um calor que duraria o resto do dia.
Horas depois, Clara estava sentada no chão do salão principal, espalhando as cópias antigas da planta baixa. O teto acima rangia toda vez que o vento batia. Ela riscou linhas novas, anotou medidas, rabiscou interrogações. Mas não era o casarão que ocupava seus pensamentos — era a foto da jovem na escadaria, guardada dentro da pasta amarelada em sua mochila.
Um sussurro de memória voltou, a voz do pai, anos atrás: "Nunca fala do que está enterrado aí. Essas paredes não podem contar tudo, Clara."
Ela apertou a caneta até quase quebrar. Raul era um problema, mas não era o maior. O maior estava no sangue, na história da família Ribeiro, misturada à história do casarão. E Miguel, com todos os defeitos dele, estava se tornando parte disso também.
Ela suspirou, guardou tudo na mochila e levantou. Precisava de ar. De distância. De silêncio que não respirasse pó.
Lá fora, o sol se escondia atrás de nuvens pesadas. Clara caminhou pelo quintal esquecido, passando os dedos pelas heras secas, sentindo a umidade que subia do chão. Ouviu passos atrás de si — não precisava virar pra saber quem era.
— Tá me seguindo agora? — perguntou, sem encarar.
Miguel parou ao lado dela, enfiando as mãos nos bolsos.
— Se eu dissesse que sim?
Ela soltou uma risada curta.
— Eu mandaria parar.
Ele ignorou.
— Raul é covarde. Vai tentar puxar teu tapete. Precisa de alguém que segure as pontas.
— E esse alguém é você? — Clara virou o rosto, encontrando o dele. Tão perto que podia contar os poros, a poeira acumulada na barba curta.
— Talvez. — Miguel baixou a voz. — Mas não posso segurar as pontas se você não me conta o que tá por trás disso tudo.
Ela respirou fundo.
— Tem coisas que não dá pra contar.
Ele encostou uma mão na parede atrás dela, bloqueando a fuga.
— Então deixa eu descobrir.
Ela sentiu o coração acelerar. Por um segundo, pensou em ceder — contar tudo: sobre os avós, sobre a herança, sobre o motivo real de restaurar o casarão. Mas em vez disso, sussurrou:
— Você não vai gostar do que vai encontrar.
Miguel sorriu, um sorriso perigoso.
— Sorte a minha que eu adoro rachaduras.
A noite caiu como um véu grosso. O casarão parecia ainda mais vivo sob a luz fraca dos refletores que iluminavam o canteiro de obra. Dentro, poucos operários ainda se moviam, recolhendo ferramentas, carregando restos de madeira podre e sacos de entulho. Clara ficou sozinha no antigo salão de jantar, agora reduzido a paredes nuas e vigas expostas.
Ela sentou-se no chão, outra vez cercada de folhas, fotos, mapas. Pegou a foto da jovem na escadaria. Passou o polegar sobre o rosto pálido, como se esperasse que a figura contasse, enfim, o que ela precisava ouvir.
Um barulho atrás dela a fez se encolher. Passos ecoando no piso solto, uma sombra projetada na parede. Miguel surgiu, o rosto metade na luz, metade engolido pela escuridão. Ele segurava duas canecas de café.
— Outra vez você aqui — disse, colocando uma das canecas ao lado dela. — Sabe que podia estar em casa, né?
— E perder a chance de conversar com fantasmas? — retrucou Clara, com um sorriso cansado.
Miguel sentou-se de frente pra ela. Bebeu um gole do café, depois pousou os olhos na foto na mão dela.
— É ela de novo?
Clara não respondeu de imediato. Fechou os olhos, como se pesasse cada sílaba.
— Essa mulher é o ponto de partida. É por causa dela que tudo isso aqui existe — disse, abrindo os olhos. — E por causa dela que tudo isso pode ruir.
Miguel franziu a testa.
— Quem é ela, Clara?
Ela suspirou, largou a foto no chão.
— Minha bisavó. Filha do primeiro dono. A história oficial diz que fugiu, abandonou tudo. A real… é que ela foi enterrada aqui.
Miguel piscou, como se não tivesse entendido de imediato.
— Enterrada? Como assim?
— Enterrada dentro dessas paredes. Metaforicamente — explicou Clara, a voz embargada. — Ela foi apagada da família. Teve um filho fora do casamento, uma vergonha na época. Meu avô. Um ramo da família que nunca deveria existir. Eu sou esse ramo. Eu sou o que não deveria estar aqui.
Miguel se aproximou, o joelho encostando no dela.
— Então você não tá restaurando só uma casa. Tá restaurando ela.
Clara riu, mas era um riso sem alegria.
— Eu tô tentando restaurar a parte que deixaram apodrecer. Mas pra isso, preciso de tudo em pé. Preciso provar que essa história importa.
Miguel olhou pra ela, a voz baixa.
— E eu? Onde eu entro nisso?
Ela ergueu os olhos. Dentro deles havia rachaduras mais profundas que as do casarão.
— Você é o único que não desaba quando eu desabo.
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Atualizado até capítulo 39
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