Capítulo 4 — Herdeiros de Tinta e Sangue
O sol mal despontava no horizonte, lançando um brilho pálido e frio pelas janelas sujas do casarão. Clara sentou-se na cadeira de madeira velha do escritório que, até ontem, era do seu pai. O silêncio daquela sala carregava memórias densas demais para serem ditas, mas ela sabia que não tinha escolha: precisava encarar de frente o que estava por vir.
Na mão, o envelope com a notificação oficial. O peso do papel era mais pesado do que qualquer pedra de cimento que ela já carregara no canteiro de obra. O documento continha a ameaça legal de que a construção seria embargada por conta de contestação na posse da propriedade.
Ela ouviu passos atrás de si e virou-se para encontrar Miguel entrando, com os olhos cansados, mas cheios de uma determinação silenciosa que sempre a confortava.
— Você viu o que chegou? — perguntou ela, mostrando o envelope.
Miguel pegou o papel com mãos firmes, a testa franzida.
— Samuel Prado. Ele é o tal “parente distante” que surgiu do nada, certo?
— Isso mesmo. — Clara respirou fundo. — Trouxe documentos que parecem comprovar direitos sobre a casa.
— Papéis, rostos, histórias antigas — murmurou Miguel. — Nunca é só isso que está em jogo.
Ela assentiu, sentindo o aperto no peito aumentar.
— Eu precisava que isso fosse só sobre arquitetura, reformas, cimento. Mas é sangue. Herança. Segredos que tentam enterrar.
Naquele instante, Raul Menezes entrou na sala com o sorriso irônico que Clara já conhecia bem.
— Vocês dois ainda tentando segurar a obra? — provocou ele, os olhos frios. — Meu amigo Samuel está pronto para acabar com essa novela.
— Raul, não subestime a Clara — respondeu Miguel, ficando entre os dois. — Essa luta não termina assim tão fácil.
— Ah, Brandão, é melhor você tomar cuidado para não se queimar também — retrucou Raul, jogando um olhar de aviso. — Essa briga é maior do que você imagina.
O silêncio que se seguiu foi cortado apenas pelo farfalhar dos papéis que Raul trazia consigo, espalhando dúvidas e ameaças.
Mais tarde, sozinha no escritório, Clara folheou as certidões de nascimento, testamentos e cartas antigas que Samuel havia apresentado. Cada documento parecia puxar a trama para um passado que ela mal conhecia, mas que ameaçava seu futuro.
Ela se perguntou quantos daqueles rostos nas fotos empoeiradas eram realmente seus, quantas histórias tinham sido apagadas para que sua família continuasse a existir.
Miguel entrou devagar, colocando uma xícara de café na mesa.
— Se tem uma coisa que aprendi com você, Clara, é que você não desiste fácil.
Ela sorriu, com a voz embargada.
— Não é só isso. É mais do que a obra, mais do que o dinheiro. É minha identidade.
Os dias seguintes foram uma tormenta. Samuel e Raul se tornaram presença constante no canteiro, trazendo advogados, ameaças e um embargo iminente. A pressão aumentava e, junto com ela, a tensão entre Clara e Miguel também começou a corroer o que parecia inabalável.
Em uma noite especialmente fria, Clara decidiu ir até o antigo escritório do pai, buscando qualquer pista, qualquer documento que pudesse mudar o rumo daquela batalha.
A chave girou com um estalo rouco. O escritório estava tomado por poeira, papel e silêncio. Cada gaveta parecia esconder segredos, cada pastas, memórias amargas.
Miguel chegou logo atrás, seus passos ecoando no chão de madeira.
— A gente precisa encontrar algo que eles não tenham — disse ele, enquanto Clara removia cuidadosamente os papéis amarelados.
Horas se passaram, e a exaustão começou a pesar. Fotos antigas, contratos antigos, recortes de jornal. Nada parecia ser o que eles procuravam.
Até que Miguel puxou uma foto em preto e branco: uma mulher jovem, olhar firme, semblante quase desafiador.
— Quem é ela?
Clara engoliu em seco.
— Minha avó. A filha do escândalo da família. Ela foi simplesmente apagada da história oficial.
Miguel a observou com cuidado, percebendo o quão profunda era a ferida que Clara carregava.
— Isso tudo é mais do que uma disputa pela casa, não é?
Ela balançou a cabeça, os olhos brilhando com lágrimas contidas.
— É uma guerra pelo que somos, pelo que fomos proibidos de ser.
Enquanto isso, Raul e Samuel intensificavam seus ataques. A burocracia parecia uma armadilha e a cada novo documento apresentado por eles, o sonho de Clara parecia mais distante.
Em uma reunião com o advogado, as palavras foram duras:
— Sem provas concretas, a justiça provavelmente vai aceitar a contestação.
Clara sentiu o chão sumir sob seus pés, mas Miguel apertou sua mão com força.
— A gente não pode desistir — disse ele, firme.
No meio da tempestade, uma visita inesperada trouxe um raio de esperança: uma senhora idosa, vestida de preto, amiga da bisavó de Clara, apareceu com uma caixa misteriosa cheia de cartas e um diário antigo.
— Talvez isso esclareça o que está por trás dessa herança — disse ela, entregando a caixa.
Clara e Miguel olharam-se, sabendo que uma nova batalha estava prestes a começar.
O dia amanheceu cinzento, mas para Clara parecia uma nova chance. Com a caixa antiga nas mãos, ela e Miguel se sentaram no chão do escritório, rodeados por papéis amarelados, cartas escritas em tinta desbotada e um diário com capa de couro rachada pelo tempo.
— Não é só papel — disse Clara, folheando as folhas com cuidado. — É a história que eles tentaram esconder.
Miguel observava, atento.
— Quem escreveu o diário?
— Minha bisavó — respondeu ela. — A mulher que muitos queriam apagar da memória da família.
À medida que as páginas se desdobravam, revelavam segredos que iam muito além da arquitetura e das disputas legais. Histórias de amor proibido, traições veladas e alianças perigosas.
— “Se alguém um dia descobrir, que seja a verdade, mesmo que ela quebre tudo o que construímos” — leu Clara em voz baixa.
O peso dessas palavras parecia pairar no ar, carregando uma força que ninguém ali estava preparado para enfrentar.
— Isso muda tudo — disse Miguel. — Se conseguirmos provar que sua bisavó tinha direitos ocultos, podemos derrubar o embargo.
Mas nem tudo era tão simples. Samuel e Raul reagiram rápido, enviando notificações de novo, pressionando com ameaças legais e ameaças veladas contra Clara e Miguel.
— Eles querem nos esmagar — disse Clara numa tarde, o rosto marcado pelo cansaço. — E às vezes eu me pergunto se não estamos lutando contra um fantasma.
Miguel segurou seu rosto entre as mãos, olhando-a com uma mistura de amor e desespero.
— Você não está sozinha. A gente vai passar por isso juntos, não importa o que aconteça.
No meio dessa tempestade, a relação deles começou a mostrar rachaduras. A pressão dos ataques, as noites mal dormidas e as incertezas começaram a corroer a confiança.
— Às vezes sinto que estamos nos perdendo — confessou Clara numa madrugada.
— Eu também — respondeu Miguel, a voz rouca. — Mas não podemos deixar que o medo vença.
Para tentar recuperar forças, eles decidiram visitar a casa da bisavó, um casarão antigo e esquecido na periferia da cidade, onde poderiam encontrar mais pistas e talvez respostas para o quebra-cabeça que os cercava.
Ao chegarem, foram recebidos por uma vizinha idosa, que parecia guardar muitos segredos.
— Vocês vieram atrás da história, não é? — perguntou ela, com um olhar que misturava desconfiança e curiosidade.
— Sim — respondeu Clara. — Queremos entender o que aconteceu de verdade.
A mulher abriu a porta e os conduziu para dentro, onde móveis antigos e retratos familiares enchiam o espaço.
— Minha mãe contou muitas coisas — disse a vizinha, com voz trêmula. — Coisas que não devem ser esquecidas, mesmo que muitos tentem fazê-lo.
Com ajuda da vizinha, Clara e Miguel descobriram cartas escondidas em um compartimento secreto, revelando acordos e segredos que ligavam sua família à de Samuel de uma maneira inesperada.
— Isso explica tanta coisa — murmurou Miguel, lendo uma carta escrita em caligrafia firme. — Essas alianças escondidas, as traições...
— É uma teia — concluiu Clara. — Uma que precisamos desvendar antes que nos enrede por completo.
Mas Samuel não estava disposto a esperar. Em uma reunião com seus advogados, anunciou que entraria com uma ação urgente para impedir a obra definitivamente.
— Eles querem nos derrubar — disse Clara, exausta, mas com os olhos flamejando determinação. — E eu não vou deixar.
Miguel segurou sua mão, a voz firme.
— Vamos continuar lutando. Até o fim.
No meio dessa batalha judicial e emocional, a casa parecia mais do que uma construção; era um símbolo de uma história de sangue, segredos e sobrevivência.
O casal sabia que ainda havia muitos capítulos para serem escritos — e que cada palavra poderia custar caro demais.
Os dias seguintes foram uma sequência de batalhas — dentro e fora do tribunal. Samuel Prado não poupava esforços para esmagar a luta de Clara e Miguel, usando estratégias que iam além das leis e documentos. Raul, seu cúmplice, passava a impressão de que era capaz de tudo para vencer.
Clara, por sua vez, sentia o peso da responsabilidade crescer a cada amanhecer. Ela não lutava só pela casa, mas pela verdade enterrada sob gerações de silêncio.
— Não podemos deixar que eles destruam tudo — disse ela numa reunião com seus advogados. — Precisamos de um plano sólido, algo que não possam contestar.
Miguel, que vinha sustentando Clara com seu apoio incondicional, sugeriu:
— E se trouxermos testemunhas? Pessoas que conhecem essa história, que podem confirmar o que encontramos nos documentos e nas cartas?
A ideia parecia promissora, mas também perigosa. Afinal, essas pessoas poderiam ser ameaçadas, e o segredo poderia acabar ainda mais exposto.
Foi numa tarde nublada que uma figura inesperada apareceu na porta do casarão: Dona Cecília, a antiga governanta da família, que havia guardado muitos segredos e observações ao longo dos anos.
— Vim porque a verdade precisa ser dita — afirmou ela, entrando com passos firmes.
Clara a recebeu com uma mistura de surpresa e esperança.
— Dona Cecília, o que a senhora sabe sobre a herança? Sobre a bisavó?
— Sei mais do que muitos querem admitir — respondeu a senhora, olhando ao redor como se esperasse que alguém escutasse.
Em uma conversa franca, Dona Cecília revelou detalhes que mudariam o rumo da disputa: alianças secretas, promessas quebradas, e até um testamento original que nunca fora registrado oficialmente.
Com essa nova informação, Clara e Miguel prepararam-se para um novo capítulo na batalha judicial.
— Agora temos algo real para mostrar — disse Miguel, determinado.
— E eles não vão saber o que os atingiu — completou Clara.
Mas enquanto isso, os laços que uniam Clara e Miguel foram testados como nunca antes. As noites de tensão e os dias de incerteza abriram fissuras em sua relação, obrigando-os a confrontar não só os inimigos externos, mas também os próprios medos.
— Estamos nos perdendo no meio disso tudo — confessou Clara certa noite, as lágrimas escorrendo silenciosas.
— Não podemos deixar — respondeu Miguel, segurando suas mãos com força. — Vamos superar isso, juntos.
O casarão, agora mais do que uma construção, era um símbolo da luta deles, da família e dos segredos que precisavam emergir.
Ao fechar o capítulo, uma última carta foi descoberta, escrita pelo próprio bisavô, que revelava um segredo guardado a sete chaves — um segredo que poderia mudar tudo.
Clara segurou o papel com as mãos trêmulas, o coração acelerado.
— Isso pode ser a chave — sussurrou.
Miguel a abraçou, preparando-se para o que viesse.
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Atualizado até capítulo 39
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