Linhas que nos Separam
📐 Capítulo 1 — O Casarão
1
A primeira coisa que Clara ouviu ao empurrar o portão enferrujado foi o rangido agudo, cortante, como se o ferro reclamasse contra o tempo que insistia em corroer tudo. O casarão na Rua Augusta permanecia ali, orgulhoso e desgastado, testemunha muda de mais de cem anos de história, misturado ao caos urbano da cidade que não parava de devorar suas próprias memórias. Para qualquer pessoa comum, aquele prédio era apenas um monte de pedras e madeira velha, um obstáculo no caminho da modernidade. Para Clara, porém, era um sussurro — cada parede carregava segredos, cada rachadura uma história, e ela era a única que ainda queria escutar.
Segurava a prancheta contra o peito como se fosse um escudo contra o mundo lá fora. A chuva fina de São Paulo grudava em seus cabelos soltos que escapavam do coque improvisado. Respirou fundo antes de dar o primeiro passo na trilha coberta de folhas e mato alto. O jardim, outrora jardim, estava agora tomado pelo abandono — bancos tombados, fonte seca, pedaços de azulejos portugueses espalhados, ecos de um passado que teimava em não morrer.
Foi então que ouviu passos atrás de si, hesitantes, mas decididos. Virou-se e viu um homem alto, de camisa encharcada e barba curta, o rosto parcialmente sombreado pelo capuz que tirou com um gesto rápido. Seus olhos, escuros e profundos, a observaram com uma mistura de curiosidade e cautela.
— Clara Ribeiro? — a voz rouca parecia carregar o peso de manhãs difíceis.
Ela assentiu, firme, segurando a prancheta com mais força.
— Sou eu. E você é o Miguel Brandão, certo?
Ele sorriu, um sorriso contido que marcava apenas o canto dos lábios.
— Exatamente. E eu sou o novo arquiteto responsável pelo reforço estrutural.
Ela estendeu a mão, e o toque foi firme, apesar da chuva que começava a se intensificar.
— Prazer em trabalhar com você. Vamos entrar.
2
A porta dupla do casarão abriu-se com um protesto de dobradiças enferrujadas, deixando entrar a luz cinzenta do dia chuvoso. Dentro, o ar era um amálgama de cheiro de mofo, madeira úmida e tinta velha — um perfume antigo que parecia contar histórias não ditas. Clara adentrou primeiro, seus olhos percorrendo cada detalhe com a precisão de quem escuta vozes nos silêncios das paredes. Miguel veio atrás, os passos ecoando no piso de tábuas rangentes.
— Você já esteve aqui antes? — perguntou, a voz baixa.
— Nunca por dentro. Só conhecia a fachada — respondeu Clara. — Para mim, esse lugar é um livro aberto esperando para ser lido e restaurado.
Miguel olhou para ela com um sorriso breve.
— Eu? Sempre achei que era mais fácil demolir e começar do zero.
— Ah, mas demolir é a solução dos preguiçosos — retrucou ela, com um brilho no olhar. — Eu prefiro entender o que está por trás daquilo tudo.
Eles seguiram para o salão principal, onde o teto afundado ameaçava desabar a qualquer momento. Clara apontou para as vigas trincadas.
— Se não reforçarmos aqui, não vai sobrar nada. Mas quero manter o máximo da estrutura original. Nada de reforma que apague a alma do lugar.
Miguel sorriu, encostado na parede.
— É... isso vai ser um desafio. Mas eu gosto de desafios.
Clara desviou o olhar, sentindo o coração acelerar por um motivo que não tinha nada a ver com a obra. Lá fora, um trovão distante anunciou a tempestade que se aproximava, enquanto dentro do casarão, uma ponte invisível começava a ser erguida entre dois mundos — o passado e o presente, o profissional e o pessoal, o conhecido e o incerto.
3
Nas semanas seguintes, Clara e Miguel dividiram a rotina intensa da obra, entre medições, cálculos e reuniões que se estendiam até tarde da noite. A equipe os via discutindo detalhes técnicos, mas também reparava nas trocas de olhares, nos sorrisos contidos, nas palavras ditas em tom baixo, quase secreto.
Numa dessas noites, sentados no chão frio do salão principal iluminado apenas por lanternas, Clara disse:
— Sabe, nunca pensei que um casarão poderia me fazer sentir tantas coisas.
Miguel riu, passando a mão no cabelo molhado de suor.
— Você sempre foi romântica com arquitetura. Eu prefiro pragmatismo, mas isso aqui... — ele fez um gesto amplo — ... tem algo a mais.
Ela o encarou, um pouco surpresa com a sinceridade.
— Talvez seja o que estamos construindo juntos, não só o prédio.
Ele hesitou antes de responder.
— Talvez.
O silêncio que seguiu foi pesado, cheio de perguntas não feitas e sentimentos não confessados. Mas naquela noite, nenhum deles dormiu pensando no casarão, e sim no que começava a nascer ali — algo que desafiava a lógica, os planos e até mesmo o tempo.
4
Porém, nem tudo era fácil. O ambiente da obra logo se encheu de rumores. Alguns funcionários cochichavam sobre o relacionamento crescente entre os dois arquitetos, outros lançavam olhares desconfiados. Clara ouviu piadas e comentários maldosos, mas preferiu ignorar. Miguel, por sua vez, tentava manter a postura profissional, mas nem sempre conseguia esconder sua irritação diante das provocações.
Numa manhã especialmente tensa, um operário fez uma observação maliciosa durante a pausa para o café:
— Parece que os arquitetos vão fazer mais que plantas por aqui, hein?
Miguel franziu a testa e respondeu ríspido:
— Foca no seu serviço, e deixa o nosso em paz.
Clara, que ouvira tudo, tentou apaziguar:
— Vamos manter o foco no projeto, pessoal. Não vamos deixar que fofocas atrapalhem nosso trabalho.
Mas dentro dela, uma fissura começava a aparecer. E se todo aquele sentimento estivesse colocando tudo a perder?
5
A tensão entre eles crescia, assim como o medo do que não poderiam controlar. Numa noite chuvosa, depois de uma reunião exaustiva, Miguel apareceu na porta do pequeno escritório onde Clara revisava os últimos relatórios. Carregava duas xícaras de café quente e um olhar cansado.
— Pensei que poderia fazer companhia — disse, entregando-lhe uma das xícaras.
Ela sorriu, aceitando o gesto simples.
— Obrigada. Às vezes, tudo que preciso é uma pausa.
Sentaram-se no chão, perto da janela que dava para o jardim escuro e silencioso. A chuva tamborilava nas folhas das árvores. Miguel olhou para Clara, suas palavras saindo com um tom mais suave do que de costume:
— Você já pensou no que estamos fazendo aqui? Não só na obra, mas... em nós?
Clara desviou o olhar, o coração acelerando.
— Sim. E também tenho medo disso.
Ele a puxou para perto, num gesto espontâneo e desesperado. O beijo que veio foi lento, hesitante, mas logo ganhou força, selando um pacto silencioso.
6
O casarão, com seus muros antigos e janelas quebradas, agora não era apenas um projeto arquitetônico para eles — era o cenário onde a vida deles começava a se entrelaçar de formas que nenhum dos dois estava preparado para enfrentar.
Enquanto o prédio ganhava estrutura, reforços e nova vida, eles construíam — pedra sobre pedra — um sentimento tão frágil quanto belo. Um amor que lutava para existir em meio às dúvidas, às convenções e, especialmente, aos segredos enterrados profundamente em suas famílias.
CONTÍNUA
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Atualizado até capítulo 39
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