📐 Capítulo 2 — Primeiras Linhas
5
Miguel ficou ali, sentado no chão ao lado de Clara, ouvindo o som da tempestade lamber as paredes do casarão. O vento batia em algum lugar no telhado, trazendo rangidos que faziam a estrutura toda parecer viva — respirando, gemendo. Entre eles, o silêncio era quase confortável, quase. Porque no fundo havia perguntas que ninguém ousava fazer.
Clara brincava com a borda da caneca vazia, os dedos úmidos de café. O rosto dela estava parcialmente iluminado pela luz amarelada da luminária, revelando olheiras fundas, algumas mechas de cabelo grudadas na testa. Mas Miguel a olhava como se fosse a primeira vez — como se não fosse uma mulher exausta, mas a chave de algo maior, algo que ele ainda não sabia nomear.
— Já pensou em largar tudo isso? — Ele perguntou, quebrando o silêncio. — A cidade, o pó, as rachaduras…
Ela deu uma risada curta, sem alegria.
— Largar tudo? Todo dia. Mas aí eu lembro que ninguém mais vai ouvir essas paredes. E que se eu for embora, elas morrem caladas.
Ele assentiu devagar, aceitando aquela resposta como se fosse uma verdade sobre ela — mas também uma armadilha.
— Às vezes eu acho que você não quer salvar o casarão — disse ele, virando o rosto para encará-la. — Quer se salvar aqui dentro.
Os olhos dela brilharam de raiva, ou de algo parecido.
— E você? — rebateu, a voz baixa, mas cortante. — Por que fica? Já vi seus projetos. Você podia estar construindo arranha-céus em Dubai, não reforçando parede podre na Rua Augusta.
Miguel sorriu, mas era um sorriso sem humor.
— Talvez eu esteja fugindo. Talvez eu precise de rachaduras maiores que as minhas.
Clara se calou. O trovão seguinte estremeceu o chão sob eles. Por um segundo, tudo pareceu mais frágil: as vigas, os segredos, os dois sentados tão perto, mas cercados de distâncias.
Ela fechou os olhos, encostando a cabeça na parede fria.
— Vai pra casa, Brandão. Antes que a gente faça besteira.
Ele não se moveu. Apenas observou o perfil dela na penumbra, memorizando cada linha.
— Tarde demais pra isso.
6
Na manhã seguinte, a chuva tinha deixado um cheiro de terra molhada que invadia os corredores. O casarão parecia respirar mais leve, mas a equipe de obra, não. Havia problemas novos a cada metro quadrado: infiltrações, cupins, orçamento que escorria pelo ralo como a água da tempestade.
Clara caminhava de prancheta em punho, distribuindo ordens como se fosse general em campo de batalha. Mas quem a olhasse de perto veria o jeito como ela evitava cruzar o olhar com Miguel. E ele, por sua vez, fazia questão de manter a distância — pelo menos na frente dos outros.
No meio da manhã, ela ouviu vozes alteradas perto da entrada lateral. Quando chegou lá, encontrou Miguel discutindo com um empreiteiro, o tal Silas, que gostava de fazer piadas sobre “arquitetas mandonas”.
— O contrato é claro, Silas! — Miguel falava, firme. — Você não vai trocar madeira original por vigas de segunda mão.
Silas, um homem baixo de barba rala, riu, cuspindo no chão.
— Quem manda sou eu aqui, Brandão. Se quer tudo bonitinho, paga mais.
Clara se meteu entre os dois antes que Miguel perdesse a paciência de vez.
— Silas, se tentar economizar na minha obra, quem vai sair é você — disse ela, gelada como o piso de mármore rachado. — E acredite: eu sou bem mais difícil de enganar que ele.
Silas bufou, mas recuou. Miguel lançou um olhar para Clara — um misto de gratidão e irritação.
— Achei que fosse minha função resolver isso — resmungou ele, quando ficaram a sós.
Ela balançou a cabeça.
— A função de quem se importa é proteger. O resto é detalhe.
7
O dia seguiu arrastado, mas a noite caiu rápido como um cobertor pesado. Clara permaneceu até tarde revisando papéis, enquanto Miguel fazia anotações em plantas digitais. Em determinado momento, os dois se cruzaram no corredor do segundo andar. Pararam, um de frente para o outro, como se o casarão inteiro prendesse a respiração.
— A gente precisa conversar — disse ele, primeiro.
Ela suspirou.
— Não aqui.
— Então onde? — Miguel se aproximou. — O casarão é tudo o que temos.
Clara olhou para os olhos dele — tão perto, tão perigosos.
— É tudo o que temos… e o que não podemos ter, Brandão.
Ele ergueu a mão, como se fosse tocá-la, mas parou no ar.
— Você tem medo de quê?
Ela deu um passo atrás, como se a parede fosse amparo.
— Tenho medo de que a gente desabe junto com essas paredes.
Ele sorriu, triste.
— É… Mas algumas paredes merecem cair, Clara.
8
Na madrugada, Clara não dormiu. Na quitinete alugada a poucos quarteirões dali, sentou-se no chão, cercada de fotos antigas do casarão. Os rostos em preto e branco a encaravam. O pai, a mãe — fantasmas que ela jurara enterrar. Mas ali, entre vigas, infiltrações e olhares de Miguel, tudo voltava.
Ela pegou uma das fotos mais antigas — a moça na escada, a mesma que Miguel dissera parecer com ela. Olhou nos olhos da desconhecida. Por um instante, sentiu um arrepio na nuca, como se a moça dissesse algo que Clara já sabia, mas não queria escutar.
Laços de sangue não se restauram, ela pensou, passando o polegar na imagem. Eles racham. Eles sufocam. E nunca somem.
9
Na manhã seguinte, Clara chegou cedo. Encontrou Miguel dormindo no banco de madeira improvisado, a cabeça apoiada em um capacete. Por um instante, ficou ali, observando-o. O peito subia e descia devagar. O rosto cansado era o mesmo homem que parecia capaz de derrubar muros inteiros — e de erguer outros, invisíveis, entre eles.
Ela encostou de leve na perna dele, chamando-o de volta ao mundo.
— Brandão. Vai pra casa.
Ele abriu os olhos devagar, o sorriso torto aparecendo.
— Bom dia pra você também, restauradora.
Ela riu, mas o riso morreu logo.
— A gente precisa de regras, Miguel.
Ele se sentou, esfregando o rosto.
— Regras? Entre rachaduras, cupins e teto caindo?
— Entre nós — completou ela, séria.
Ele a olhou como se quisesse rir, mas não encontrou graça.
— Vai ser impossível, Clara.
Ela respirou fundo.
— Eu sei.
10
Naquela noite, o casarão dormiu em silêncio, mas dentro dele as paredes sussurravam segredos. Do lado de fora, a cidade seguia seu ritmo de buzinas e luzes. Do lado de dentro, Clara e Miguel andavam por corredores diferentes, ambos conscientes de que cada parede restaurada os empurrava para mais perto do que temiam.
No escuro, entre uma rachadura e outra, o amor começava a criar raízes — finas, frágeis, teimosas como hera agarrada a tijolo velho. E assim, o que era só um projeto virava promessa, e a promessa, maldição.
CONTÍNUA
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 39
Comments