a verdadeira eu

A luz fria das lâmpadas do ginásio vazava sobre o piso de borracha. O ar tinha cheiro de metal, suor e couro — daquele aroma que parece prometer alguma coisa além do esforço físico: perigo, vontade, controle. Eu empurrei a porta e estava prestes a chamar por Carter quando a visão me deixou muda por um segundo.

Ele estava ali, no centro da sala, socando o saco de pancadas com precisão e força. Sem camisa. O suor escorria pelo torso largo, delineando cada músculo, cada linha do abdômen. Os cabelos colavam à testa; a respiração curta marcava um ritmo intenso. Fiquei parada, por um instante infantil, observando-os — os ombros firmes, os braços longos, a pele que refletia a luz como se guardasse um brilho próprio. Um calor percorreu meu corpo; confesso que, por um segundo, desejei estar nos braços dele.

— Está gostando do que vê? — a voz grossa cortou minha fantasia como faca. — Pelo tempo que fica parada, deve estar amando o espetáculo. Chegue mais perto, se quiser. Posso até deixar tocar.

O som profundo daquela voz provocou um arrepio que se espalhou pela minha espinha. Quando ele se ergueu do saco e veio na minha direção, o olhar era intenso — frio como uma lâmina — e havia, ali, um sorriso malicioso que fez minhas pernas tremerem.

— N-não seja tão idiota, Carter — tentei responder, fingindo irritação. — Vim treinar porque você pediu.

— Por que está tão nervosa, Maylin? — perguntou ele, com a calma de quem tem o controle absoluto. — Eu apenas fiz um convite.

— Guarda esse convite para você. Não estou interessada. — Mantive a voz firme, embora a boca tremesse.

Ele apenas arqueou uma sobrancelha e, com um tom que misturava autoridade e diversão, falou:

— Certo então. Vamos ao treinamento.

Carter — pensamento

Ela parada ali, com o jeito todo concentrado, me provocava uma curiosidade que eu não sentia há muito tempo. Não era só atração — era a sensação de enfrentar algo inexplorado. Aquela mulher, tão obstruída por guardas e memórias, me enchia de perguntas. E, por algum motivo, cada gesto dela pegava meus nervos.

Ao vê-la treinar, queria testá-la. Mais: queria ver até onde ia sua coragem quando a pressão apertasse. O corpo responde de forma fácil demais; a mente… a mente é o campo minado.

---

— Você trouxe suas roupas? — perguntei, mudando de assunto, controlando a voz.

— Roupas? — ela repetiu, confusa.

— Sim. Algo confortável para você se mover melhor. — Falei, seco.

Ela assentiu, sumiu por um minuto e voltou já vestida para o treino. Quando entrou na sala eu a vi curvar-se e apoiar as mãos sobre minha mesa, olhando nos meus olhos.

— Pronto, Carter. Agora sou sua. — disse ela, desafiadora.

Vi os olhos dela brilhar. Um sorriso enigmático desenhou-se em meus lábios antes de perceber que, na verdade, estava sorrindo.

— Você parece a Mulher-Gato — murmurei, quase sem pensar.

— De onde tirou isso? — ela retrucou, o rubor subindo nas bochechas.

— Você tem esse ar — respondi, pousando os olhos nela como se fosse medir músculo, peso e intenção.

— Acho que está fantas... — ela tentou.

— Talvez eu esteja. Com você. — completei, a voz baixa.

Ela sorriu, um rubor simples. Havia algo hipnótico na forma como ela se permitia provocá-lo — e então me levantei, caminhando até o centro do salão com o ar autoritário que sempre uso. Mantinha meus olhos fixos nos dela, sem jamais desviar.

-— E então? O que vamos fazer com você agora, amor? — anunciei, lacônico. — O treinamento não será leve.

Ela fingiu não se abalar. A mão dela repousava sobre a mesa; a minha passou, brevemente, roçando a dela. O toque foi quase nada, mas prolongado o suficiente para que ambos o percebêssemos. Ficamos ali, sem nos mover, em silêncio que ardia.

— Bom, então já que você não inicia o treino, eu vou embora, Carter. — ela disse, fingindo cansaço.

— Não. — respondi curto. — Você não irá. Nem comecei e já quer fugir? Maylin, acha mesmo que vou deixar você ir?

Ela me provocou com os olhos, desafiadora.

— Tente me impedir, Carter.

O brilho infantil — e singular — que apareceu no meu olhar foi inevitável. Avancei.

— Isso é um desafio? — perguntei.

— Eu poderia acabar com você em segundos. — ela falou, altiva.

— Tem certeza? — devolvi, divertido.

— Absoluta, Carterzinho. — ela devolveu, dando-me um apelido como uma punhalada.

Tive que me conter para não rir. Nunca gostei de apelidos. Ainda assim... havia algo nela que provocava.

Ela veio com um soco direto ao peito; bloqueei com as mãos e senti a força que vinha dela. Sorrio, confiante.

— Se queria um jeito de me tocar, era só pedir, Maylin. — falei, provocador. — Sei que você quer tocar meu corpo de alguma forma e usa o treino como desculpa.

Empurrei-a levemente para trás. Ela voltou ao ataque, cada golpe medido, cada esquiva nossa uma coreografia de instinto. Eu não a atingia de verdade — não era esse o ponto. Era testar, medir, forçar limites. Quando eu corrigi minha postura e segurei seu tornozelo no ar, senti a tensão vibrar entre nós.

— Solte-me, Carter, ou... — ela rosnou.

— Ou o quê? — perguntei, divertido. — Se pedir por favor eu solto, princesa.

— Nunca. — respondeu.

Segurei o tornozelo com firmeza e pressionei-o levemente até que ela bateu contra a parede. A respiração dela pesou sonora.

— Não pegarei leve com quem me desafia — avisei.

— Então continuarei desafiando. — ela devolveu, feroz.

Pausa. A sala ficou apenas com o som da respiração. O ar parecia espesso. Olhei para ela, avaliando. Algo em seu rosto dizia que havia mais que força bruta — havia técnica, controle, algo que se aprendera com dor e disciplina. E então falei:

— Renda-se.

— O quê?

— Renda-se. — repeti, tranquilo.

— Não. — veio a resposta, firme.

Senti-a vibrar com desafio, e por um segundo quase cedi à tentação de apertar mais — mas em vez disso, deixei um convite rasteiro: ofereci uma chance, uma barganha sem palavras.

— A menos que tenha uma oferta melhor — disse, com aquele sorriso que ela tanto odiava.

O sorriso que lhe dei produziu um efeito estranho: vi o estômago dela tremer, a respiração acelerar. Era a hora de provar que ela era mais do que aparências. Quando soltou meu tornozelo, empurrei para trás, e por um instante fui pego de surpresa ao perder o equilíbrio.

— Agora estou sentindo firmeza, Maylin. — comentei, com a voz meio rouca.

Ela rolou para longe, agachando-se em posição de combate, clara e pronta. Estávamos em jogo. Ela se movia com um pulso tão vivo que era um prazer tenso de assistir. Estávamos girando ao redor da mesa, trocando pega e evasão, cada golpe elevando a adrenalina. Eu a empurrei por cima da mesa e a segurei contra a parede — desta vez mais firme, quase selvagem — e nossos corpos se tocaram de forma quase total.

— Carter... — sussurrou ela.

— Diga. — disse eu, baixo.

O ar ficou denso; pude ouvir o som de nossos próprios corações. Ela me fitou; havia algo suave no olhar quando afirmou:

— Você está ficando forte, Maylin.

— Cala a boca. — retruquei, mas sem graça.

— Não sou um homem gentil, Maylin. — avisei, seco.

— Eu não tenho medo, Carter. — ela respondeu, desafiante.

— Diga meu nome de novo. — pedi.

— Carter... — vocalizou, e eu senti o nome como uma pequena lâmina.

Aquecimento, respiração, calor que subia rápido. Meu rosto aproximou-se do dela. A proximidade era perigosa; o pulso acelerava. Quando minhas mãos deslizaram por seu pescoço e ela arqueou o corpo, a sensação fuegou algo primitivo e indecifrável.

— Você se rende? — perguntei, com mais doçura do que a situação permitia.

Ela hesitou. A tensão entre nós era um fio vibrante, pronto para partir.

— E-eu me rendo. — ela disse, quase se entregando.

Houve um silêncio absolutamente elétrico. Ela suspirou e, por um segundo que durou um universo, senti sua rendição como uma concessão íntima. A respiração dela quente perto da minha pele. Eu queria mais, mas o dever me puxou de volta.

— Boa luta, Maylin. — falei, recuando.

Afastar-me foi uma decisão consciente: manter o controle, preservar ambos do que poderia se tornar algo maior. Ainda assim, enquanto me afastava, vi a confusão no rosto dela — a mesma que eu poderia reconhecer no espelho. O sorriso que coloquei foi breve, contido.

— Espero treinar de novo com você. — murmurei, contido.

Ela saiu sem responder. Talvez eu a tenha desapontado; talvez eu a tenha salvo de um passo em falso. Talvez eu tenha apenas reagido da maneira que sempre reajo: controlando o ímpeto para manter a missão acima da vontade.

---

Carter — pensamento

O que aconteceu ali foi perigoso. Não só para ela, mas para mim. Essa mulher mexe com algo que eu mantive preso por anos: curiosidade misturada com um gosto estranho, quase viciante. O toque dela ficou gravado. O som do nome que ela deixou escapar ecoou mais do que gostaria de admitir.

Não posso me permitir fraquezas agora. Ainda assim, no momento em que vi a rendição — aquele “eu me rendo” — a corda interna dentro de mim apertou de um jeito que fazia doer. Eu não sabia se isso era bom ou ruim. Só sabia que queria descobrir até onde isso podia ir, e quanto poderia controlar antes que se tornasse um problema.

---

Saí da sala em silêncio e a acompanhei até a saída com um olhar que prometia respostas — e testes.

O dia ainda não terminara. A chuva começava a cair fora das janelas, e uma sensação de presságio fazia o ar ficar denso. Algo maior se movia nas sombras; a guerra que eu vinha planejando há anos começava a mostrar os dentes. E no meio desse turbilhão, uma mulher com olhos de gelo e fogo acabara de se colocar diante de mim — não como refém, nem como aliada completa, mas como variável imprevisível.

E eu, Carter, decidi: a observarei, a testarei, e, se preciso, a moldarei. Porque em tempos de guerra, toda vantagem conta — inclusive a mais perigosa das distrações.

A chuva já caía grossa quando acelerei pela rua. O céu estava negro, cortado por relâmpagos que iluminavam a cidade em flashes brancos e frios. No banco do carro, meu corpo ainda vibrava da luta; o calor da adrenalina misturava-se com o frio da noite. Pensei em Carter por um segundo — no modo como ele havia recuado, no absoluto controle que se impunha assim que a única coisa que me impelia surgia. Sacudi a cabeça. Agora não era hora de pensar nisso. Maya precisava de mim.

Cheguei à escola com as botas molhadas e a jaqueta grudando nas costas. Entrei em silêncio, o corredor estava vazio; o relógio digital marcava já depois do horário de saída. Havia apenas uma professora, em pé junto a uma mesa, os olhos arregalados quando me viu.

— Você chegou muito atrasada, senhorita Maylin — ela disse, a voz curta, os lábios comprimidos.

— Desculpe — mal consegui responder quando a professora virou o corpo, e eu a vi: uma mulher pálida, magra, olhos fundamenteados por uma determinação estranha. Ao lado dela, encapuzado, o mesmo homem do estacionamento. O ar mudou como se o tempo tivesse prendido a respiração.

— Você — consegui dizer, apontando — saia de perto dela agora. Se tocar nela, juro que… — minha mão já buscava a arma presa no cós; não hesitaria em usá-la.

Antes que eu pudesse avançar, a mulher puxou uma faca. Num movimento rápido ela arranhou a minha blusa perto do peito; o tecido rasgou e a pele ficou levemente exposta. O choque foi um golpe curto. A lâmina traçou a pele, não atingiu profundo, mas foi o suficiente para me lembrar o quão vulnerável eu podia parecer.

Um grito — o som agudo e cristalino de Maya — cortou tudo. O homem encapuzado agarrou minha irmã pela cintura e disparou para as escadas. Meu corpo reagiu instintivamente: corri atrás dele, esquecendo da professora, esquecendo da faca — só havia um objetivo: Maya.

A mulher tentou me bloquear. Era humana, sim, mas havia algo nos olhos dela: medo misturado com fanatismo. Quando ela avançou para me deter, eu a empurrei para o lado e dei um chute certeiro na nuca. Ela desabou, inerte, não mortalmente ferida — minha intenção fora incapacitar, não matar. Não era meu estilo deixar corpos quando podia evitar.

Corri pelo corredor, o chão molhado refletindo as luzes — passos, respiração, o pulso batendo na boca do estômago. Lá embaixo, a sombra do homem encapuzado sumia na rua. Ouvi um som, um tropeço, um gemido abafado. Mais à frente, uma cena que me congelou: o homem estirado no asfalto, os ossos e a carne como se algo enorme e brutal o tivesse rasgado. O cheiro de ferro no ar me atingiu.

Eu gritei por Maya, correndo até o ponto onde encontrei Carter amparando minha irmã nos braços. Ela chorava, as lágrimas lavando o rosto pequeno e sujo. Carter estava imóvel, olhos escuros e frios, com o casaco molhado grudando no corpo. Havia um resquício de chuva em seus cabelos; a mandíbula rígida mostrava que ele também havia sentido a violência minutos antes.

— O que aconteceu? — minha voz saiu tensa, cortante. Eu não esperei explicação; a raiva foi automática. — Diz agora, Carter — disse, puxando a arma como se fosse usá-la naquele exato segundo.

Ele levantou a cabeça devagar, como um predador calculando a distância antes do salto.

— Maya está bem — disse ele, calmo. — Eu a encontrei nos braços. Ela estava sendo levada. O homem… não se importava em ser deixado para trás. — Seus olhos pousaram no corpo estendido. — Ele não era o líder. Era um mensageiro. Eles testam os limites. Querem nos assustar.

Pela primeira vez, algo que não era só trabalho brilhou em seus olhos — uma mistura de frustração, preocupação genuína e algo como dor. Talvez fosse o som de uma memória antiga. Eu olhei para minha irmã: pequena, respirando alto, segurando o casaco de Carter com as mãos trêmulas.

— Quem é ela? — perguntei, sobre a mulher desmaiada no chão.

— Ela foi coagida — respondeu Carter — ou escolheu. Muitos humanos fazem acordos por desespero. Não julgo sem ouvir. — Ele me olhou, como quem esperava minha reação. — Leve a menina para o carro. Eu trato do resto.

Maya já se aninhava no meu abraço, o corpo quente e tremendo. Ao olhar para Carter, senti a raiva subir. A mão dele tocou minha cintura por um segundo — um gesto automático de apoio que me fez estremecer por dentro e me deixou furiosa por estar tão vulnerável a isso.

— Diga-me agora — ordenei, sem conseguir evitar a pressa no tom. — Como você me achou? Por que estava por ali?

Ele respirou fundo, os olhos sondando a rua como se esperasse outro ataque a qualquer momento.

— Saí atrás de você quando você saiu sem dizer nada. — Ele forçou um meio sorriso. — Segui, e vi o vampiro tentando fugir com uma criança. O resto… seguiu sozinho.

A confusão e o calor no meu estômago deram lugar a outra coisa: gratidão, e uma raiva que queimava por não confiar totalmente nele. Ainda assim, ao observar Carter segurando Maya, vendo como ela o obedecia — já pequena e apegada — senti algo inesperado: ternura. E uma pontada de ciúme; quão rápido ela aceitara esse estranho como “tio”?

— Ele é do bem — Maya disse, entre soluços, olhando para Carter com olhos ainda cheios de susto, mas com gratidão.

— Ela mesma disse — Carter murmurou, com uma sombra de sorriso que parecia forçado. — Você me deve um pedido de desculpas.

— Desculpas. — falei, palavra curta, dura.

Carter me olhou como quem tenta entender um enigma. Em seus pensamentos, eu via peças se encaixando.

— Ela acha mesmo que sou tão ruim assim? — pensei que vi em seus olhos. Nunca machucaria uma criança. Nunca assim. Ela é a única coisa restante para ela. Não sou cruel desse jeito. Talvez… talvez eu a queira por mim, de uma maneira que não deveria admitir.

— Como me achou? — repeti, mais branda, mas ainda firme.

— Você saiu sem avisar. Eu te segui para me desculpar. Vi o vampiro correndo com uma menina e salvei-a. Não pensei que fosse sua irmã. — Ele fez uma pausa, o rosto fechado. — O vampiro pode ser uma pista. Ele não agiu sozinho.

Enquanto conversávamos, Maya segurou nossas mãos juntas — a dela pequena entre as nossas. Ela sorriu, pedindo, quase exigindo:

— Maninha, convida o tio para nossa casa. Ele me salvou. Vamos comer juntos.

O pedido simples e sincero cortou meu coração de uma maneira que me envergonhou. Eu me abaixei, verifiquei seus pequenos braços, seus olhos, procurando machucados. Não havia ferimentos graves; só o susto. Quando a abracei de novo, senti o aperto de ambos — a segurança que um abraço de irmã dá e o calor humano que eu, tantas vezes, evitaria admitir precisar.

— Está bem — disse eu, tentando parecer firme. — Talvez no fim de semana. Hoje está tarde.

Carter sorriu para a criança e, por um momento, foi apenas humano — menos o chefe frio, menos o predador calculista; apenas um homem que prometia voltar. Ele fez até piada com ela, brincou e prometeu enviar um guarda. Maya deu-lhe um soco no braço e riu — era a vida normal que eu nutria como ideal para ela.

Mas, enquanto voltávamos para o carro, fiquei pensando no homem rasgado no asfalto, nas pistas que podíamos ter perdido, e em como aquilo tudo parecia se articular em algo maior. Carter, de pé na chuva, olhando os destroços, não parecia aliviado. Parecia faminto por respostas.

— O que faremos com o corpo? — perguntei baixinho, sem tirar os olhos da cena.

— Você o queima — respondeu ele sem hesitar. — E a mulher? — ele me olhou com frieza calculada. — Leve-a com você. Deixe que confesse. Se for coerção, lidaremos de outra forma. Se for outra coisa… quero ouvi-la.

— Você não manda em mim, xuxu. — respondi, tentando recuperar uma réstia de provocação para manter o equilíbrio entre nós.

— Eu não teria paciência para discussões agora — disse ele, sério. — Faça o que eu peço.

Assenti. O ato de queimar um corpo parecia grotesco, mas também necessário — apagar rastros, evitar espalhamento de pânico, encobrir as pegadas de uma guerra que começava. Eu não tinha ilusões sobre minha própria vida: era sangue e violência o que nos cercava.

Antes de nos afastarmos, Carter encostou a mão no meu ombro com um toque rápido — um gesto que disse mais que qualquer palavra: “confie em mim”. Eu queria confiar; parte de mim desejava essa confiança com fervor. Outra parte sabia que a confiança é um luxo que se paga caro.

Quando o carro partiu, a chuva parecia diminuir de intensidade como um suspiro. Maya adormeceu no banco de trás, protegida. Eu olhei para Carter no retrovisor. Seus olhos encontraram os meus por um segundo; havia ali algo não dito — e perigoso.

No banco da frente, enquanto dirigia, encontrei o fundo do meu peito um buraco de inquietação. A luta, o resgate, o corpo no asfalto: tudo me lembrava do motivo pelo qual eu lutava. Proteger a minha irmã. E, naquele ímpeto, um pensamento frio se formou: havia muito mais por trás desses ataques — e o líder deles não se esconderia para sempre.

Carter observava a cidade pela janela, o rosto áspero sob gotas de chuva. Em silêncio, penso que ele não sabia o quanto havia me salvado — além da vida da Maya. Havia mexido em algo dentro de mim que eu ainda não havia entendido.

---

Carter — pensamento final

Ela me irrita. Ela me desafia. Ela me domina de uma forma que não deveria ser possível. E, ainda assim, quando a vi com as mãos no rosto da criança que é sua irmã, algo em mim relaxou. Sou um homem com miséria suficiente para ter medo do que a guerra fará com aqueles que eu deixo entrar perto demais.

Preciso dela ao meu lado — não só por utilidade, mas porque, de algum modo, ela acende algo. Algo perigoso. E se eu não controlar essa chama, pode me queimar — ou me fortalecer.

A noite terminava com gosto de fumo e chuva. E, no silêncio do carro enquanto levava a criança para casa, sabia que o jogo havia apenas começado. O líder dos vampiros se movia nas sombras. Nós, do outro lado, só tínhamos perguntas. E uma nova peça, voluntária ou não, havia se sentado ao meu redor do tabuleiro.

---

Chegamos em casa com Maya adormecida no banco de trás, a respiração miúda embalada pela chuva morna que batia no para-brisa. O silêncio no carro era pesado: cada uma das gotas parecia contar uma história de sangue, medo e expectativa. Estacionei em frente ao prédio discreto, desliguei o motor e esperei. Carter ficou alguns segundos olhando pela janela, o rosto apagado sob a luz fraca do painel.

— Vou queimar o corpo — disse depois, num tom sem discussão. — Você o fará desaparecer. Rastreadores não encontrarão nada se fizermos certo.

Assenti. O gesto era mecânico, mas cheio de significado: apagar evidências, cortar rastros, cuidar dos detalhes sujos. O mundo que eu e minha irmã habitávamos não tinha espaço para misericórdia. Somente decisões racionais e frieza. Levei a criança até a porta, e Carter me ajudou a acomodar a Maya nos braços, beijando-lhe a testa com um gesto quase paternal que me cortou por dentro.

— Fique com ela — disse, num sotaque áspero. — Vou cuidar do resto.

Ele saiu e eu subi com Maya nos braços. Ao entrar, a casa cheirava a lenha e café frio. Arrumei cobertores para ela, ajeitei o cabelo loiro que grudara na bochecha e sentei-me na beirada do sofá, observando a respiração tranquila da menina. Quando me virei, vi Carter na soleira da porta, molhado, a roupa grudada, o olhar distante.

— Como você sabe dessas rotas? — perguntei, sentando em frente a ele. — Como soube onde me encontrar?

Ele hesitou, por um segundo — o intervalo foi curto, mas cheio de significados.

— Eu vigiei. — disse, simples. — Você saiu sem avisar. Eu te segui. Não confunda minhas ações com sentimentalismo. É pragmatismo. Você desapareceu e eu preciso que você responda quando some.

Ri sem humor, uma risada cortada. O tom duro dele tocava um nervo que eu tentava proteger.

— Eu não devia ter saído sozinha. Concordo. Mas você também não deveria ter me seguido. — respondi. — E obrigada por salvar a Maya.

Ele arqueou a sobrancelha, como se guardar gratidão fosse algo estranho para ele.

— Não foi por você. — rebateu, rápido. — Foi pela informação. E por eficiência. — Depois, desviou o olhar, como se algo pequeno o puxasse para longe. — Mas não me interprete mal: não sou benevolente.

— Ainda bem. — murmurei, secando as mãos no cobertor. — Não preciso de benevolência. Preciso que me ajude a descobrir quem está por trás disso.

Carter aproximou-se e sentou-se ao meu lado. A proximidade emudecia. Havia algo no modo como o ombro dele tocava o meu que fazia as palavras parecerem supérfluas. Ele suspirou.

— Eles estão mais organizados do que pensei — disse baixinho. — Usam humanos desesperados como peões. Precisamos entender a hierarquia deles. O líder… não se esconde como antes. Ele comanda pelas sombras e testa nossa reação.

— Você acha que é um único líder ou uma aliança? — perguntei, a mente trabalhando em mapas, nomes e possibilidades.

— Por enquanto, parece um líder — respondeu ele, com convicção sombria. — Mas lideranças podem mascarar conselhos, alianças. Eles agem como se quisessem nos provocar. Isso é diferente de um ataque isolado: é intimidação estratégica.

Fiz uma pausa e olhei para o casaco no cabide — ainda com cheiro de chuva e do que restara da cena. Sentia um peso novo no peito: a sensação de que eu entrara num jogo maior do que eu imaginava.

— Nós precisamos de pistas. O vampiro que encontrei… não foi um mero errante. Ele tinha marcas — símbolos. — Confessei. — Vi algo no pulso dele, algo gravado. Talvez marca de uma linhagem ou sinal de clã.

Os olhos de Carter se estreitaram.

— Traga-me tudo o que tiver — disse. — E não conte isso a ninguém além de mim. Confidencialidade integral. Entendo que você tem segredos, Maylin. Não é hora de escondê-los, mas também não de entregá-los sem necessidade.

O tom era um limite e um aviso. Senti algo fechar em mim: velhas defesas que eu usara por anos para proteger minha irmã e a mim mesma. Era tentador abrir tudo e deixar que Carter organizasse os fragmentos, mas não podia. Não ainda.

— Você não precisa que eu conte tudo agora. — falei, com calma aparente. — Só quero que saiba: eu consigo lidar com o que vier. Não me subestime.

Ele me observou por um momento longo demais. Havia um brilho de reconhecimento — talvez respeito — nos olhos dele.

— Sei que consegue. — disse, curto. — Mas quero treinar seu autocontrole. E quero ver seu passado diante de fatos, não de histórias. Se houver algo que me comprometa, quero saber antes de me comprometer com você. Entende?

Concordei. Era um pacto sombrio, silencioso: eu daria parte da confiança em troca de proteção e respostas. A criança murmurou algo no colo, e eu a abracei com força.

Carter levantou-se, aproximou-se da janela e olhou para fora. A chuva já diminuía, mas as ruas ainda brilhavam sob as luzes urbanas. Ele ficou em silêncio por longos segundos; então falou, como se lesse uma conclusão sem fim.

— Amanhã começamos a montar uma linha de investigação. Eu quero rastrear pistas do lado humano e do lado sobrenatural. Vou colocar homens de confiança nas ruas e você estará comigo nas operações mais delicadas. — Sua voz era firme. — E Maylin…

Ele virou-se, e aquele olhar que eu já conhecia — duro, íntimo, curioso — encontrou o meu.

— Não me desaponte.

As palavras pareciam simples, mas carregavam promessa e ameaça. Eu não era de se deixar amedrontar por ordens; meu sangue já fora guiado por ordens piores e piores. Mesmo assim, havia algo nas palavras dele que me fez concordar sem pensar.

— Não vou. — prometi.

Ele me ofereceu um breve, quase invisível aceno de respeito, e então se afastou. No corredor, antes de ir embora, parou.

— Cuide da sua irmã. — disse. — E, Maylin — acrescentou, num tom mais suave, como se aquele homem implacável permitisse um faísca de humanidade — — não se exponha desnecessariamente.

Eu arqueei o lábio, um sorriso que misturava ironia e alívio.

— Não se preocupe — respondi. — Eu cuido dela. E saib a esperar.

Ele sorriu de canto, mudo, enigmático. Abaixou a cabeça e saiu. A porta se fechou com um som seco. No silêncio que ficou, senti uma mistura estranha de segurança e desconfiança.

---

Mais tarde, quando a noite já era completa e a casa estava em ordem, fiz o que precisava: levei o corpo para fora e o incinerei num local seguro. Havia ritualidade nisso — não pela cerimônia, mas pela necessidade. O fogo consumia vestígios, memórias, pistas sujas. As chamas dançavam alto na escuridão, refletindo no meu rosto enquanto eu observava até que não restasse nada a ser visto.

Ao retornar, enxuguei as mãos e encontrei Carter na varanda, olhando para as estrelas encobertas. Ele se virou devagar, como se já soubesse que eu o observaria.

— Acabou? — perguntou.

— Sim. — respondi. — Está feito. — Senti um cansaço pesado tomar conta. — E a mulher?

— A mulher ficará sob custódia. Se for coagida, terá uma chance de redenção; se estiver do outro lado, não terá misericórdia. — A voz dele era inflexível. — Confie em mim.

Olhei para ele: homem-árvore, enraizado entre dever e desejo. A proximidade nos alcançou outra vez; havia uma tensão que oscilava, sempre perigosa.

— Por que você está fazendo isso por nós? — perguntei, sincera. — Por que se colocar em risco?

Ele me encarou, e por um segundo o homem afiado deu lugar a algo que eu mal reconheci:

— Porque se eles ganharem, você e sua irmã não têm lugar no mundo. — respondeu. — E… porque há razões minhas que ainda não expliquei. — A frase pareceu pesá-lo; havia história por trás dela, segredos que ele guardava com o próprio corpo.

— Segredos — murmurei. — Todos nós os temos.

— Exatamente. — Carter se aproximou, a mão roçando a minha por breve instante, fugindo antes que eu pudesse responder. — Durma. Amanhã será um longo dia.

Antes de me afastar, ele deixou cair uma última linha, baixa como um selo:

— E Maylin? Não confunda rendição com fraqueza.

Fui até Maya, deitei-me ao lado dela no sofá e a envolvi com a manta. Olhei para o teto, e as sombras jogavam imagens confusas. Os ecos do dia — a luta, o sangue no asfalto, as palavras de Carter — giravam na minha cabeça. Havia algumas coisas que eu tinha certeza: protegia minha irmã; lutaria até o fim; e que, ao meu redor, inimigos mais inteligentes estavam em movimento.

No escuro, a respiração da criança me deu uma paz fragmentada. Mas a guerra continuava lá fora.

Do lado de fora da janela, nas sombras da cidade, algo se moveu. Não era um humano. Havia intenção, inteligência. Uma presença que observava. E uma voz ecoou num sopro para os becos onde a noite é mais escura: o líder não estava mais escondendo as mãos. Estava pronto para jogar.

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