POV AYLA
Cheguei em casa desnorteada, a cabeça explodindo com o que tinha acontecido. Só conseguia pensar numa coisa: se meu pai sonhasse que a filhinha dele estava no meio do fogo cruzado e nos braços do dono da maior favela do Rio… ele me matava. Pqp. Entrei no banho com esse pensamento martelando.
Saí do banho e pulei na cama — pelada mesmo — porque cansaço não espera etiqueta. Ainda sentia o beijo como se fosse um calor preso na pele; por um segundo sorri sozinha no escuro antes que o cansaço me engolisse.
Acordei no dia seguinte com o corpo doendo, mas decidi que não ia perder o sábado por causa disso. Levantei, fui ao banheiro, e escolhi um biquíni fio-dental — porque eu amo e pronto. Mandei mensagem pra Alana: “Praia sábado? Tô indo.” Imaginei a paz de um dia quente, água salgada, esquecer o caos — e torci por dentro para que o tal traficante me apagasse da cabeça.
Mas por mais que eu tentasse fingir que tudo voltava ao normal, algo dentro de mim tinha mudado. O beijo não era só um beijo. Era um ponteiro apontando pra uma vida que eu não pedi — e ainda assim, estranhamente, não queria largar.
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POV GUSTAVO
Deixei a garota no apartamento e fui direto pra casa. O banho foi rápido e quente, na tentativa de tirar o cheiro de pólvora da pele e o gosto do beijo da cabeça. Cara, que beijo. Boca macia, corpo que me deu vontade de fude ela bem gostosinho, de não deixar pra depois. Saí do banho ainda com isso na mente e juro que tive que me controlar.
Desci as escadas e encontrei dona Márcia na cozinha — ela que cuida da casa faz tempo. Dei um beijo na testa dela por hábito, meio automático.
— Oi, meu filho. Bom dia! Já fiz o café e aquele bolo de chocolate que você gosta. — Ela sorriu como quem quer cuidar do mundo.
— Valeu, dona Márcia. Justo hoje que eu tava com vontade. — Respondi, mais simples do que o que eu sentia por dentro.
Terminei o café, peguei as chaves da moto, o rádio e a arma. Trabalho não pode esperar. Fui pra boca.
No QG, a cena me pegou de surpresa: Ronaldinho, meu braço direito, tava na minha mesa com uma mulher vadia — rindo, folgando. Era desrespeito com a minha cara, com o meu tempo, com tudo que eu tava colocando em risco lá fora. Senti a raiva subindo como febre.
— Sai daqui — mandei seco. A voz saiu mais cortante do que eu queria.
Ele só riu, como se não me levasse a sério. Isso me irritou ainda mais. Um ressentimento antigo, desses que vira ferida quando você menos espera.
— Ronaldinho — chamei de novo, agora estendendo a mão pro rádio no meu bolso. — Quero você concentrado, não de sacanagem na minha mesa.
Ele levantou, devagar, a expressão desafiadora. Atrás da provocação, eu percebi tensão — não só a dele, mas de todo mundo da sala. Olhares que pesavam, dedos que se mexiam involuntariamente perto de armas. Sinal de que a rua ainda fumegava depois do baile.
— Tem coisa vindo — falei baixo, mais pra mim do que pra ele. — Fiquem no posto. Ninguém vai inventar de aparecer aqui.
Ronaldinho assentiu, agora sério. Pareceu entender que o jogo tinha avançado um nível. Saí da sala com a sensação de que a noite não tinha acabado — e que a guerra que me colocou no centro daquilo ali tinha apenas começado.
No caminho da saída, peguei o rádio e acionei uma voz firme:
— Mantém as entradas blindadas. Hoje quem errar, paga.
A moto rugiu na rua escura, e eu sabia que a conta daquele tiro da testa — daquela decisão — ainda ia pesar. Por enquanto, levava uma mulher ferida de medo e um sorriso impossível gravado na memória. E isso, por si só, já era motivo suficiente para continuar.
POV GUSTAVO
UMA SEMANA DEPOIS
A favela ainda cheirava a pólvora. Era como se a cidade inteira tivesse tomado febre — uma semana inteira de confronto depois do capuz com a testa estourada. Quem invadia meu território aprende rápido que aqui não tem moleza. A violência não era só retaliação; era aviso. E aviso eu sabia mandar.
Estava na boca, checando carga, contando nota por nota, quando meu pensamento foi pra ela. A patricinha. Ainda não sabia o nome direito — e, pra ser honesto, talvez nem quisesse saber tudo — mas a imagem do beijo voltava em loop. Curioso e irritante ao mesmo tempo.
Peguei o rádio e liguei pro Renan, meu hacker. Preciso de informação limpa e rápida: endereço, rotina, qualquer coisa que me diga onde ela tá hoje.
— Jae, chefe — ele atendeu, sempre com uma impaciência que eu já acostumei. — Passa o número que eu puxo tudo: rede social, localizações recentes, até extrato bancário se tiver necessidade.
Sorri. Renan gostava de mostrar serviço.
— Pega o endereço dela. E vê o que ela tá fazendo hoje. Foto se tiver — mandei curto, sem rodeios.
Ele riu na linha, um som que sabia demais do meu temperamento, e desligou. Voltei pro trabalho: conferi a carga que chegara, dividi as encomendas, contei o dinheiro. A rotina era um metrônomo — paguei os meus soldados, distribuí o que precisava ser distribuído. Quem cuida da rua sobrevive.
Enquanto isso, no bolso, o celular vibrou. Mensagem de Renan: “Achei. Ela tá na orla. Foto anexa. Biquíni vermelho.”
Por um segundo, tudo que eu sentia virou pequeno: um sorriso torto, meio de vitória, meio de confusão. Não sei se era ciúme, preocupação, ou só a vontade de saber onde — e com quem — ela estava. Levantei a cabeça e observei a boca: rostos que me deviam lealdade, olhares que calculavam risco e ganho. Respirei fundo.
— Guarda isso pra mim — mandei pro Renan, sem explicar por quê. — Só observa. Me avisa se ela for embora.
Fechei o aparelho e deixei o som da rua entrar. A guerra não terminara, mas por ora eu tinha um mapa: ela estava viva, ao menos. E isso, no meio desse caos, já era suficiente para fazer meu mundo girar uma direção nova.
Peguei a chave da moto. Antes de subir, olhei pra minha gangue — homens que eu tornei fortes, homens que me acompanham porque sabem o preço de me trair. Se fosse preciso, eu cruzaria a cidade. Se fosse preciso, eu passaria por cima de mais qualquer corpo. Por enquanto, só iria ver.
Subi na moto e roncei o motor. A noite vinha cedo, mas eu tinha pressa. No bolso, a foto dela queimava como promessa — e, pela primeira vez em dias, uma coisa clara se formou na cabeça: eu não deixaria que alguém a arrastasse pra essa guerra sem avisar. Independentemente do que eu era.
A moto sumiu pela ladeira. E a favela continuou a queimar, em silêncio e em sirene.
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Atualizado até capítulo 70
Comments
Leitora compulsiva
vai atrás da Paty é🤭
2025-10-29
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