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VISÃO DE KAEL

Capítulo 1 — A Terra Depois da Queda

Meu nome é Kael. E eu sou o último filho de uma era que não deveria mais existir.

Há mais de trezentos anos, nasci de uma fêmea que nunca conheci. Ela morreu minutos depois de me trazer ao mundo, e dizem que seu corpo foi o último a carregar o perfume sagrado das mulheres de nossa espécie. Desde então, o vento sopra apenas o cheiro da terra e da cinza — lembranças do que fomos, ecos do que perdemos.

O mundo que conheço é um cemitério renascido.

Cinco séculos atrás, os humanos destruíram tudo. A guerra não foi apenas entre nações — foi entre ideias, entre arrogâncias, entre mãos que acreditavam poder controlar o próprio destino. Criaram uma arma para vencer a morte e libertaram algo que se alimentou da vida. Um vírus, forjado em laboratórios, alterou o sangue dos homens, distorcendo o que havia de puro e transformando o corpo humano em um novo molde.

Nasceram então os híbridos — nós.

Primeiro vieram os bebês com asas negras, corpos longilíneos e músculos densos como aço orgânico. A mutação nos fez belos e terríveis, um reflexo cruel da natureza tentando sobreviver ao erro da humanidade.

Mas o dom tinha um preço.

As fêmeas começaram a morrer.

Uma a uma, desapareceram como brasas consumidas pelo vento. A última delas foi minha mãe — a última voz suave neste mundo de gritos e aço. Com sua morte, a eternidade se tornou uma maldição: vivemos por séculos, mas sem procriar, sem recomeço.

Hoje, a Terra é um corpo em recuperação. As cicatrizes da guerra antiga ainda se mostram em cidades quebradas, engolidas pelas raízes das florestas que voltaram a crescer. Rios tornaram-se espelhos cristalinos. O céu — dizem os mais velhos — voltou a ser azul. Eu mesmo nunca o vi de outra cor. É estranho pensar que esse mesmo céu já foi coberto por fumaça e fogo. Agora, ele parece limpo demais, como se zombasse de nós — sobreviventes de um pecado que não cometemos.

Vivemos divididos em cinco clãs, todos da mesma raça, todos machos.

O Clã do Norte, onde o frio corta até o osso; o Clã do Deserto, que ainda luta contra as tempestades de cinza; o Clã das Ruínas, que vive entre as torres partidas do antigo mundo; o Clã do Abismo, oculto nas montanhas onde o vento nunca dorme; e o meu — o Clã de Eryon.

Eu sou seu líder, embora seja o mais jovem entre todos.

Talvez o destino tenha me deixado por último para carregar o peso dos mortos.

Carrego em minhas costas asas negras como a noite sem lua. São imensas — quando as abro, o vento se curva. Meus músculos, forjados pela mutação e pelo tempo, são mais uma lembrança de que somos a cópia imperfeita de deuses que nunca existiram. Vivemos séculos, curamos feridas que matariam qualquer humano, suportamos frio, fome, dor. Mas dentro de nós há um vazio que nem o tempo consegue apagar.

O silêncio deste mundo é antigo.

Os lagos refletem o sol com uma calma enganosa, as cachoeiras cantam canções que ninguém mais entende. Às vezes imagino que a própria Terra tenta nos consolar, sussurrando que a guerra acabou, que podemos descansar.

Mas descanso é algo que não conheço.

Liderar o que sobrou da nossa espécie é caminhar sobre o fio entre o passado e o esquecimento.

Os anciãos contam histórias de quando as fêmeas caminhavam entre nós — criaturas de olhos profundos e asas tão belas quanto o amanhecer. Dizem que eram mais fortes que muitos machos e que suas vozes podiam acalmar até os corações mais selvagens. Eu ouço essas histórias e sinto algo que não entendo.

Desejo, talvez. Ou apenas curiosidade.

Nunca vi uma fêmea.

Não sei o som da voz de uma.

Não sei o toque, o olhar, o calor.

Só conheço a solidão que veio depois.

Há séculos tentamos compreender o vírus que nos criou. Alguns acreditam que ele nos deu poder demais e nos roubou o equilíbrio. Outros dizem que foi a própria Terra quem nos moldou para sobreviver à destruição. Seja qual for a verdade, somos o último capítulo de uma história que o universo parece querer esquecer.

Os cinco clãs se odeiam.

É um ódio antigo, tão profundo quanto as raízes das árvores que cobrem o mundo. Guerras sem propósito mantêm o sangue fluindo — talvez seja a única maneira de lembrar que ainda estamos vivos.

Quando o sol nasce, vejo os céus cortados por asas. Irmãos e inimigos se confundem. O som das lâminas, o choque das penas, o rugido do vento — tudo isso se repete há séculos.

Mas há algo diferente agora.

Algo no ar.

O mundo está mudando outra vez.

As florestas crescem com uma rapidez que assusta. As criaturas que sobrevivem ao nosso redor tornaram-se maiores, mais espertas. Às vezes, nas ruínas das cidades antigas, encontro marcas no chão, pegadas que não pertencem a nenhum de nós.

Há rumores entre os clãs.

Alguns dizem que a Terra está tentando criar de novo o que perdeu. Que o vírus ainda vive, adormecido sob o solo, pronto para despertar.

Outros acreditam que novas fêmeas nascerão, e que o ciclo começará novamente.

Eu... não sei o que acreditar.

O vento sopra sobre os campos quando fecho os olhos.

Penso em minha mãe — aquela que nunca vi, mas cuja morte moldou todo o meu destino. Sinto como se cada batida das minhas asas carregasse um pouco do sangue dela, uma lembrança distante de algo que não consigo compreender.

Talvez o que chame de liderança não passe de uma tentativa de preencher o vazio que ela deixou.

Caminho até o limite das montanhas e olho o horizonte. O sol se despede com cores que lembram fogo líquido. As sombras das árvores alongam-se sobre a terra úmida. O ar tem o gosto metálico da memória.

Às vezes penso que a guerra nunca terminou — apenas mudou de forma.

Agora é travada dentro de nós.

Entre o instinto e a razão, entre o passado e o futuro que talvez nunca venha.

Os anciãos dizem que eu carrego o olhar dos primeiros — os que viram o mundo que existiu antes da queda. Não sei se acredito nisso, mas sinto o peso de cada século em meus ombros. Sou jovem, dizem, mas o tempo me observa com paciência cruel.

Tenho mais de trezentos anos, e ainda espero por algo que nem sei nomear.

O vento sopra mais forte. Minhas asas se abrem sozinhas, respondendo ao chamado do ar. O som é como o de trovões distantes.

Olho para o céu azul e imagino o que haveria além dele, se ainda existe algo como esperança.

A Terra renasceu — mas nós, os filhos do erro, continuamos presos ao que fomos.

E eu...

Sou Kael, o último nascido do ventre de uma fêmea, o primeiro a liderar um povo sem futuro.

Carrego o sangue da última mulher e o peso de um mundo que insiste em sobreviver.

Talvez seja isso o que resta de nós: uma lembrança viva de que a perfeição sempre cobra o preço mais alto.

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Comments

Carla Santos

Carla Santos

Que essa fêmea extinta apareça pra aquecer os corações desses homens híbridos da última fêmea

2025-11-05

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