CAPÍTULO 5

O Silêncio das Paredes

Acordei com a luz atravessando a cortina como se quisesse me arrancar dos meus sonhos. Por um instante, esqueci onde estava. O teto branco, o lustre de cristal, o cheiro de perfume caro misturado com o da madeira polida... nada daquilo era meu. Me virei lentamente na cama e percebi como ela era absurdamente macia, como se o colchão me abraçasse. Eu nunca tinha deitado em algo assim — parecia até pecado descansar num conforto tão grande. Lá no sítio, meu colchão era duro, e o vento passava pelas frestas da janela levando o cheiro de terra e de chuva. Aqui, o ar tinha outro peso, outro silêncio.

Sentei na beira da cama e respirei fundo. Tudo era bonito demais, frio demais. Olhei ao redor e vi as paredes sem retratos, os móveis imponentes, mas sem alma. Era o tipo de beleza que não aquecia ninguém. Mesmo assim, agradeci a Deus em pensamento por ter um teto e comida. Afinal, depois que papai se foi, eu não tinha mais nada além da lembrança da voz dele dizendo pra eu ser forte.

Levantei e fui direto pro banheiro. A água morna caiu sobre minha pele e senti o corpo estremecer — fazia dias que não tomava um banho tão bom. Ainda assim, alguma coisa dentro de mim apertava, como se esse conforto todo tivesse um preço que eu ainda não entendia.

Depois de me arrumar, coloquei uma roupa simples, uma saia azul e uma blusa branca que trouxe da fazenda. Abri as cortinas e deixei o sol entrar. Vi o jardim lá fora, enorme, com flores que pareciam ter sido plantadas só pra enfeitar a vista. Não era o tipo de lugar que me fazia sentir em casa, mas eu tentava não pensar nisso.

Arrumei a cama como papai me ensinou: lençol esticado, travesseiro no centro, cobertor dobrado aos pés. Ele sempre dizia que uma cama arrumada era sinal de uma alma disciplinada. Mesmo sem ele aqui, eu queria continuar sendo a filha que ele ensinou a ser.

Desci as escadas devagar, observando cada detalhe da casa. O piso brilhava tanto que eu via meu reflexo. As paredes eram cobertas por quadros antigos — paisagens, retratos de gente que parecia ter morrido há séculos. Tudo cheirava a poder e distância.

Quando cheguei à sala de jantar, a mesa já estava posta. Pães, frutas, café, e um perfume de manteiga derretida no ar. Nenhum empregado à vista. Só o som distante de passos em outro cômodo.

Sentei e fechei os olhos.

Rezei em silêncio, como sempre fazia antes das refeições. Pedi que o dia fosse leve, que o coração do meu tio se enchesse de luz, e que Deus me mostrasse o caminho certo agora que meu pai não podia mais me guiar.

“Amém”, murmurei baixinho, abrindo os olhos.

Foi então que levei um susto.

Meu tio Magno estava parado à minha frente, com aquele olhar sério e penetrante, os braços cruzados, como se me observasse há um tempo.

— O que estava fazendo, garota? — perguntou, com a voz grave e rouca.

Levei um segundo pra responder. — Estava rezando, tio.

Ele arqueou uma sobrancelha, e por um momento achei que fosse rir de mim. Mas ele apenas soltou um som seco, um riso breve que pareceu mais incredulidade do que diversão.

— Olha só... já está me chamando de tio — disse, encostando-se na cadeira à frente. — Isso é bom. Mostra que está se adaptando.

Tentei sorrir, mas ele parecia distante, como se falasse de um outro mundo que eu ainda não conhecia.

Ele pegou uma xícara, encheu de café, e antes de beber, me olhou de novo. — Mas aqui, nesse lugar, Isabela... rezar não muda as coisas. A cidade é diferente do campo. Aqui, o certo e o errado andam de mãos dadas.

Abaixei os olhos, mexendo no pão à minha frente. — Mesmo assim, tio, é justamente por isso que a gente deve rezar mais. Quanto mais escuridão, mais precisamos de fé.

Ele ficou em silêncio por alguns segundos, e o som do relógio da parede foi o único que preencheu o ar. Então ele deu um meio sorriso — frio, sem alcançar os olhos — e bebeu o café.

Terminamos o café da manhã quase sem trocar palavras. Ele comia devagar, como quem pensa em mil coisas ao mesmo tempo. Havia algo no olhar dele, uma sombra que parecia antiga, como se carregasse o peso de coisas que eu não deveria saber.

Quando ele terminou, limpou a boca com o guardanapo e se levantou. — Venha — disse. — Vou te mostrar a casa. Depois preciso voltar ao trabalho.

— Mas o senhor... quer dizer, o senhor ainda está de luto.

Ele se virou pra mim e, pela primeira vez, vi algo diferente naquele rosto. Não era dor. Era... vazio.

— Não posso me dar ao luxo de luto, Isabela. Aqui, parar é o mesmo que morrer.

Essas palavras ficaram ecoando dentro de mim, como uma sentença. Segui ele pelos corredores, tentando entender aquele homem que era meu único parente vivo, mas parecia tão distante quanto um estranho.

A cada cômodo que ele mostrava, eu me sentia menor. As paredes guardavam segredos. Havia portas trancadas, e corredores onde o ar parecia mais pesado. Em um momento, passamos por uma porta de aço, e ele apenas disse: — Aqui você nunca entra, entendeu?

Assenti em silêncio.

Magno abriu o portão dos fundos e apontou pro quintal. Era enorme, mas cercado por muros altos, quase como uma prisão bonita. Lá no fundo, vi alguns homens armados — discretos, mas atentos. Fingiram não olhar pra nós, mas eu senti seus olhos me acompanhando.

— São seguranças — ele explicou, sem que eu perguntasse. — Aqui é mais perigoso do que parece.

Eu engoli seco.

Não sabia ao certo o que ele queria dizer com aquilo, mas algo me dizia que a vida na cidade não era nada parecida com o que eu imaginava.

Voltamos pra dentro, e ele parou na escada. — Preciso ir agora. Cuide-se, e se precisar de algo, fale com Rosa, a governanta.

Fiquei ali, parada, observando enquanto ele se afastava. A cada passo, parecia que o ar ficava mais frio.

Eu queria perguntar mil coisas. Sobre meu pai, sobre o passado deles, sobre o motivo de ele nunca ter aparecido antes. Mas a lembrança do jeito que ele me olhou no café me fez calar.

Subi pro meu quarto e sentei na cama. Do lado de fora, o som distante de carros e buzinas me lembrou de que eu não estava mais no campo. Fechei os olhos e tentei imaginar o rosto da minha mãe, aquele que eu nunca conheci. Tentei lembrar da voz do meu pai, e do jeito que ele dizia que o mundo era perigoso demais pras almas boas.

Agora eu entendia o que ele quis dizer.

Mas ainda assim, eu rezaria.

Mesmo que ninguém acreditasse.

Mesmo que o próprio inferno morasse atrás daquelas portas de aço.

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Comments

Claudia louca por Livros📚

Claudia louca por Livros📚

Autora cadê você mais capítulo por favor eu sou uma pervertida ansiosa,nao vejo a hora deles se conhecerem e se envolverem e irei pros finalmente. 😁 então querida autora não demora em atualizar ta bom .🥰

2025-10-19

0

Celia Aparecida

Celia Aparecida

autora cadê os capítulos agora, que estou começando ler sua história e já estou ficando cada vez mais facinada com sua história posta mais plis

2025-10-19

0

Elenir Lima

Elenir Lima

Não é o inferno atrás da porta de ferro mais são as armas. Você terar que rezar muito porque o corvo negro está prestes a pousar no seu esconderijo

2025-10-19

0

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