— A Menina do Rosário
Narrado por Isabela
O vento do campo sempre teve um som diferente, quase como uma prece sussurrada entre as folhas. Cresci ouvindo esse som, achando que ele era a voz de Deus me dizendo que eu nunca estava sozinha. Papai costumava dizer que o silêncio do campo é o que mais ensina — e eu aprendi a ouvir. Aprendi a entender o canto dos pássaros, o farfalhar das árvores e até o barulho da chuva caindo no telhado velho do nosso sítio.
Desde que me entendo por gente, minha vida foi aqui, entre o cheiro da terra molhada e o som distante das badaladas da igrejinha de Santo Antônio. Papai sempre foi um homem rígido, desses que não precisam levantar a voz para impor respeito. Ele acreditava que a fé devia vir antes de tudo. “Sem Deus, filha, o homem vira bicho”, ele dizia, enquanto passava os dedos calejados pelo terço que nunca saía do bolso.
Eu cresci vendo aquele terço mais do que qualquer brinquedo. Era o que ele usava quando rezávamos antes das refeições, antes de dormir e, principalmente, quando as tempestades vinham. Ele ficava de joelhos no chão batido e orava com tanta força que às vezes eu achava que o próprio céu parava pra ouvir.
Nunca fui de ter amigos. Papai não permitia que eu fosse pra cidade com frequência, dizia que lá havia gente perdida, sem fé. Então meus dias eram preenchidos com aulas particulares dadas por Dona Clara, uma professora aposentada que vinha duas vezes por semana. O resto do tempo, eu lia. Lia a Bíblia, os cadernos antigos da escola, as cartas de um tempo em que papai ainda acreditava que a vida poderia ser diferente.
Eu aprendi a ser quieta. Aprendi que segredos não se contam, que o coração é uma coisa frágil demais pra ser exposto. Nunca tive com quem dividir meus pensamentos, meus medos, meus sonhos bobos. Às vezes eu falava sozinha, ou com o espelho, só pra ouvir minha própria voz.
Mas apesar de tudo, eu era feliz. Havia uma paz estranha naquela rotina. Eu sabia o horário em que o galo cantava, o momento exato em que o sol batia na janela do meu quarto e a hora em que papai voltava da lavoura. Tudo era exato, controlado, quase sagrado.
O padre Miguel costumava vir à fazenda uma vez por mês. Um homem sereno, de fala doce, que sempre trazia um pão benzido e palavras de conforto. Ele e papai passavam horas conversando na varanda sobre fé, sobre pecado, sobre o que o mundo estava se tornando. Eu servia café e ficava ouvindo de longe, sem ousar interromper. O padre dizia que eu era uma menina de alma pura, dessas que nascem pra servir à luz. Papai sorria orgulhoso quando ouvia isso.
Mas o tempo… o tempo começou a roubar o brilho dos olhos dele. Aos poucos, o homem forte e imponente foi ficando cansado. Tosses que não passavam, noites sem sono, mãos trêmulas. Ele dizia que era só o peso da idade, mas eu sabia que era mais. Eu sentia.
Um dia, acordei antes do sol e o encontrei sentado na varanda, com o terço entre os dedos e o olhar perdido no horizonte. A brisa fria cortava o rosto dele, mas ele não parecia sentir.
— Pai, o senhor não dormiu? — perguntei baixinho.
Ele me olhou, sorriu fraco e respondeu:
— Às vezes Deus chama a gente pra conversar quando o mundo ainda dorme, filha.
Aquilo me gelou por dentro. Eu queria entender o que ele queria dizer, mas fiquei quieta. Só sentei ao lado dele e fiquei ali, em silêncio.
Nos dias seguintes, ele começou a me afastar de certas tarefas. Dizia que eu não precisava me cansar, que eu devia cuidar mais dos estudos e da fé. Mas eu via as mãos dele tremerem, via o suor frio escorrendo na testa, via o rosário cada vez mais apertado entre os dedos. Ele estava morrendo, e eu sabia. Só não sabia como lidar com isso.
Naquela noite choveu muito. Eu lembro do cheiro da terra molhada e do som do trovão cortando o céu. Ele estava deitado, respirando com dificuldade, mas não queria que eu chamasse o médico. “Se for hora, é hora”, sussurrou. Fiquei ao lado dele, segurando sua mão, rezando o terço que ele me ensinou.
— Promete que vai continuar acreditando, minha filha… — foram as últimas palavras dele.
O resto foi silêncio. O tipo de silêncio que corta a alma.
Acordei no outro dia com o padre Miguel ao meu lado, tentando me consolar. Disseram que o coração dele parou. Mas no fundo, algo me dizia que não era só isso. Papai tinha inimigos, mesmo sem nunca ter feito mal a ninguém — ou talvez o passado dele escondesse algo que eu ainda não sabia.
Fiquei dias sem comer, sem dormir, andando pela casa como uma sombra. O campo, antes cheio de vida, agora parecia morto comigo. Eu só tinha ele. Sempre foi só ele.
Minha mãe… nunca conheci. Morreu no parto, e papai nunca quis falar sobre ela. Dizia apenas que ela tinha um coração bom, e que foi o amor da vida dele. Nunca vi uma foto, nunca soube seu nome completo. Era como se ela tivesse sido apagada do mundo — e de mim.
Agora, com ele morto, eu estava sozinha de verdade. Sozinha no meio de hectares de terra, de lembranças, de orações que pareciam não ter mais resposta.
Eu me lembro do dia do enterro. O padre falava palavras bonitas, mas tudo soava distante. Eu olhava para o caixão e esperava que ele se levantasse, que dissesse “foi só um susto, minha filha”. Mas ele não se levantou.
Foi ali que o mundo acabou pra mim.
Depois do enterro, a fazenda ficou em silêncio absoluto. Nenhum pássaro, nenhum vento, nada. Só o barulho do meu coração tentando entender o que seria de mim agora.
Dias depois, enquanto eu tentava arrumar as coisas dele, um carro parou na porteira. Um homem desceu. Tinha o mesmo olhar firme do meu pai, mas um ar mais pesado, sombrio. Ele caminhou até mim com passos lentos, o casaco preto contrastando com o sol do fim da tarde.
— Isabela? — a voz dele era grave, autoritária.
— Sim… quem é o senhor? — perguntei, ainda sem entender.
— Sou Magno… irmão do seu pai.
O nome soou estranho. Eu nunca soube que papai tinha um irmão.
Ele me olhou com um misto de pena e dureza.
— Ele me escreveu há alguns meses. Disse que estava doente. Eu devia ter vindo antes… — murmurou.
Ficamos em silêncio por um tempo, até que ele perguntou:
— Você tem pra onde ir, menina?
Neguei com a cabeça.
— Algum emprego, alguém que possa te ajudar?
— Não, senhor.
Ele suspirou fundo, olhou para o chão por um momento e depois voltou o olhar pra mim.
— Então você vem comigo. Pelo menos até se ajeitar.
Eu devia ter recusado. Devia ter desconfiado daquele olhar frio e daquela voz que não deixava espaço pra escolha. Mas eu estava perdida demais pra dizer não.
E foi assim que deixei o campo, minha casa, meu pai e tudo o que eu conhecia pra trás. E seguir um homem totalmente desconhecido, achei estranho ele dizer que era irmão de meu pai, sendo que não foi no funeral e nem no interro, bom talvez seja que ele não goste desse clima e de entrar la dentro.
ISABELLA 24 ANOS...
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Atualizado até capítulo 34
Comments
Elenir Lima
Me desculpe autora mais não gostei da foto dela, não combina nada com ele, apesar dela ser do campo, poderia ser inocente mais com essa atriz ela não tem cara de inocente mais de alguém com problemas mentais, lembrando que é apenas minha opinião
2025-10-18
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Claudia louca por Livros📚
Eu não iria com um homem que eu nunca tinha conhecido garota louca mesmo que estivesse triste pela minha perda eu não deixaria a minha casa.
2025-10-19
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Graciela Rosa
oiii autoraaa olha eu aqui presa nos seus livros novamente ❤️
2025-10-20
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