A madrugada avança de forma diferente quando você carrega a verdade nos ombros. Para mim, não havia sono, apenas vigilância.
Para ela, havia o peso de começar a enxergar além das cortinas que a polícia e o senso comum erguiam. A cada respiração, eu percebia o conflito dentro da mulher: medo do que via e desejo de não ser enganada nunca mais.
Enquanto examinava novamente a sala, percebi que não estava apenas coletando pistas. Eu estava reconstituindo uma memória.
A casa falava comigo, e cada detalhe era um eco.
— Arthur… — ela disse, quebrando o silêncio. — Por que eu não percebi nada antes? Como pude viver ao lado dele sem saber que o perigo estava tão perto?
Respirei fundo antes de responder.
— Ninguém percebe o que não está disposto a ver. As pessoas se acostumam a ignorar o incômodo porque é mais fácil. Mas os rastros estão sempre lá. Sempre.
Ela desviou o olhar, como se buscasse dentro da própria mente sinais perdidos. Talvez quisesse encontrar uma lembrança que explicasse o que aconteceu.
Mas lembranças são traiçoeiras: se moldam ao medo e ao desejo.
Continuei minha investigação. No canto da sala, próximo ao rodapé, havia uma marca escura quase imperceptível. Ajoelhei-me para examiná-la.
Não era sujeira. Era cera de vela derretida.
— Vocês costumavam usar velas aqui? — perguntei.
— Não. — respondeu, confusa. — Temos luz elétrica em todos os cômodos.
Aquela gota de cera me disse mais do que qualquer palavra. Se alguém trouxe uma vela, não foi por necessidade, mas por ritual.
O crime deixava de ser apenas físico. Havia simbolismo, intenção.
— Então, quem fez isso, deixou mais do que rastros materiais. — murmurei. — Deixou ecos.
Ela se aproximou e se abaixou ao meu lado. Pela primeira vez, olhou para a marca como eu olhava.
Os olhos dela se fixaram, como se finalmente entendessem a linguagem oculta.
— Eu vejo… — disse, quase em transe. — Isso não deveria estar aqui. É como… uma assinatura.
Sorri.
— Exato. Agora você começa a entender. Cada crime é um recado. Não para todos, mas para quem sabe decifrá-lo.
Ela passou a mão pelos braços, tentando afastar o arrepio. E então, hesitante, confessou algo que Nos últimos meses, ele vinha recebendo cartas. Eu nunca vi o conteúdo. Ele escondia de mim. Achava que era coisa do trabalho.
Fitei-a sério.
— Onde estão essas cartas?
— No escritório dele, no andar de cima.
Subimos. O corredor era estreito, os quadros antigos observavam nossa passagem como testemunhas silenciosas.
Ao entrar no escritório, senti imediatamente a diferença de energia. Ali não havia encenação. Ali estavam os segredos verdadeiros.
A escrivaninha estava organizada demais, mas não para mim. O excesso de ordem é tão suspeito quanto o caos.
Abri a gaveta inferior. Nada. Segunda gaveta, papéis comuns. Mas atrás de uma pasta encontrei o que procurava: envelopes amarelados, amarrados com um cordão.
Ela colocou a mão sobre a boca ao vê-los.
— Meu Deus… ele guardou todos.
Peguei o primeiro envelope. A caligrafia era firme, quase ritualística. Não precisei abrir para sentir o peso daquilo. Mas abri.
E as palavras que li não eram apenas cartas. Eram ameaças veladas. Eram avisos.
“Você não pode escapar do passado. O que foi feito será cobrado.”
Fechei o envelope e olhei para ela.
— Seu marido não era apenas uma vítima. Ele estava preso a algo muito maior.
O silêncio dela foi mais eloquente que qualquer grito.
Naquele instante, percebi: o caso não era apenas sobre uma morte. Era sobre o retorno de algo antigo, algo que ecoava do passado e que agora caía sobre nós dois.
E se antes ela hesitava em ver, agora não tinha mais escolha.
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Atualizado até capítulo 30
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