capítulo 3 a primeira conversão

Sempre digo que meu trabalho não é apenas investigar crimes, mas ensinar as pessoas a enxergar.

Não é sobre provas materiais, mas sobre os sinais que o mundo deixa quando alguém tenta escondê-los.

E, naquela noite, percebi que a mulher começava a me seguir com os olhos, absorvendo cada detalhe que eu analisava.

Ficamos em silêncio por um tempo, observando a sala. Para ela, provavelmente, ainda era apenas o cômodo onde havia perdido o marido.

Para mim, era um palco.

— O senhor vê coisas que não existem? — ela perguntou, hesitante.

— Não. — respondi. — Eu vejo o que está ali, mas ninguém mais quer ver.

Aproximei-me do quadro torto na parede. Pedi que ela viesse comigo. Toquei a moldura com a ponta dos dedos.

— Veja a marca aqui. — apontei para o risco na parede. — Alguém segurou isso, se apoiou. Não foi acidente.

Ela inclinou o rosto, ainda sem acreditar. Seus olhos buscavam uma lógica.

— Mas… poderia ser o vento, ou talvez eu mesma quando limpei.

Sorri, sem ironia.

— Essa é a diferença. Eu não ignoro o improvável. Se o vento moveu o quadro, por que há marcas de dedos?

Se foi você, por que a poeira não foi retirada apenas dessa parte? Cada detalhe tem uma história.

Ela ficou em silêncio. E pela primeira vez notei: estava tentando ver o mundo pelos meus olhos.

Levei-a até a cadeira arranhada. Passei o dedo pela madeira riscada.

— Imagine. Seu marido lutando. Ele se agarrou aqui. Sentiu medo. — Olhei para ela. — Consegue ver?

A respiração dela ficou pesada. Apertou as mãos como se segurasse algo invisível. Talvez fosse a dor, talvez a verdade.

— Eu… eu consigo. — murmurou.

Ali começou a conversão. O momento em que a mente dela se abriu para a realidade que ninguém mais ousava encarar.

Andei até o copo caído.

— O que vê aqui? — perguntei.

Ela olhou. Respirou fundo. Depois, hesitante, respondeu:— Se tivesse caído… deveria estar quebrado. Mas não está. Parece que… foi colocado assim.

Sorri.

— Exatamente. Você está vendo.

O choque nos olhos dela foi imediato. Não pelo copo, mas por perceber que conseguia olhar além do óbvio.

Essa é a primeira queda: quando se rompe o conforto da normalidade.

Ela se sentou devagar, como se o peso da verdade fosse demais para carregar em pé.

— Meu Deus… se isso é verdade, então alguém esteve aqui.

— Não apenas esteve — completei. — Alguém quis que parecesse banal.

E quando alguém tenta encenar um acidente, é porque teme ser descoberto.

Ela ergueu os olhos para mim, agora diferentes. Mais atentos, mais duros.

— E se eu não quiser ver mais? — perguntou.

Me aproximei, grave, mas sem elevar a voz:

— Não há retorno depois que os olhos se abrem. Você pode negar, pode fingir, mas nunca mais vai olhar este lugar da mesma forma.

O mundo inteiro muda quando se aprende a enxergar.

Um silêncio denso se instalou. O tipo de silêncio que gruda na pele. Então ela respirou fundo, e percebi: havia aceitado.

— Então me ensine. — disse, firme. — Me ensine a ver.

Naquele instante, percebi que não estava apenas investigando um crime. Estava formando uma testemunha diferente.

Alguém que, mesmo tomada pela dor, começava a enxergar os fragmentos invisíveis que sustentavam a verdade.

E eu sabia: uma vez iniciado esse caminho, não há volta. Nem para ela. Nem para mim.

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