capítulo 2. fragmentos invisíveis

O bairro estava silencioso demais quando cheguei. Ruas estreitas, casas antigas, o tipo de lugar em que os vizinhos conhecem a rotina uns dos outros e qualquer barulho fora do comum vira assunto para a semana inteira. Ainda assim, aquela noite estava morta, abafada, como se o luto tivesse se espalhado até para o vento.

A mulher me esperava na porta. Reconheci sua voz antes de reconhecer seu rosto. Era a mesma respiração trêmula que ouvi ao telefone. De perto, sua aparência confirmava o que eu já havia imaginado: pele cansada, olheiras marcadas, mas não de fraqueza. Eram cicatrizes de quem tenta manter o controle quando tudo desmorona.

— Detetive Silveira? — perguntou, sem firmeza. — Prefiro Arthur. — Nomes formais criam muros,e muros atrapalham quando se quer ver o que está escondido.

Ela abriu espaço para que eu entrasse. O cheiro da casa foi a primeira pista: mistura de café requentado com o leve azedo de flores murchas. Perfume de luto improvisado.

A sala estava intacta demais, como se alguém tivesse passado a tarde inteira limpando cada detalhe. Mas as marcas nunca desaparecem por completo. Elas se escondem. E eu as encontro.

— Foi aqui. — a mulher apontou para o canto, onde antes o corpo de seu marido havia sido

encontrado.

Ajoelhei-me devagar, os olhos percorrendo o chão. A maioria das pessoas procura o sangue. Eu procuro as ausências. Havia um copo de vidro próximo à mesa. Caído, mas sem estilhaços. Isso não é queda. É encenação.

A poltrona ao lado estava levemente fora do alinhamento. Para olhos comuns, um detalhe

irrelevante. Para mim, um gesto de desequilíbrio. Alguém se apoiou ali, com peso.

Olhei para a parede: um quadro torto. O vento não o moveria naquela direção. O toque humano,sim.

Tudo gritava que não era acidente.

— A polícia disse que ele escorregou… — a voz dela ecoou atrás de mim.

Passei os dedos sobre a toalha da mesa. Uma dobra recente, distinta do resto do tecido. Alguém puxou com pressa. Talvez para esconder ou pegar algo.

— Eles dizem isso quando não querem pensar demais. — respondi, ainda agachado.

Segui até a cadeira. Pequenos arranhões no braço de madeira. Unhas, arranhões de quem se agarra desesperadamente tentando resistir. O corpo fala até quando não há mais vida nele.

Levantei o olhar para a mulher. Os olhos dela buscavam em mim não apenas respostas, mas confirmação de que sua intuição não era loucura. Respirei fundo e lhe entreguei o que ela já sabia:

— Seu marido não morreu por acaso.

Ela recuou um passo, como se minhas palavras fossem uma lâmina. O rosto dela oscilou entre alívio e pavor. Alívio porque alguém enfim a escutava; pavor porque isso significava que a morte não era um acidente, mas uma escolha de alguém.Deixei meus olhos passearem novamente pela sala. O copo cuidadosamente derrubado, a

poltrona fora do lugar, o quadro torto. Não eram erros, eram marcas de um ator ruim tentando fingir naturalidade. Aquilo não era apenas um crime. Era uma encenação.

E encenações sempre deixam rastros em algum lugar.

— Essa é a pergunta errada. — falei, baixo. — Primeiro precisamos entender como. O “quem” se revela no reflexo do “como”.

Ela não respondeu. Apenas me observava com uma mistura de medo e fascínio, como se já começasse a ver pela primeira vez os fragmentos invisíveis que para mim nunca se calam.

De pé, ajeitei o chapéu e acrescentei: — Mas esteja preparada. Quando eu lhe mostrar o que eu vejo, você nunca mais vai olhar para esta casa da mesma maneira.

O silêncio que se seguiu foi mais pesado que qualquer grito.

— Quem… quem faria isso? — sussurrou.

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