Vendo Mundo Pelos Meus Olhos.

Vendo Mundo Pelos Meus Olhos.

capítulo 1.o chamado.

A chuva cai pesada contra a vidraça do meu escritório. Para qualquer pessoa comum, ela não passaria de água suja escorrendo pelo vidro, mas para mim é um conjunto de linhas que desenham histórias. Cada gota que escorre traz um reflexo da cidade lá fora: os postes manchados de ferrugem, a sombra rápida de alguém que corre com guarda-chuva, o asfalto engolindo faróis apagados. Tudo me fala, sempre me fala.

Estou sentado na mesma poltrona de sempre, o couro gasto me abraçando com a familiaridade de um velho cúmplice. A sala, para os outros, é só bagunça: livros amontoados, jornais velhos, pastas com papéis soltos. Mas eu não vejo bagunça. Eu vejo sinais. A xícara esquecida sobre a mesa

ainda guarda a marca de um batom vermelho que não é meu. A poeira no canto esquerdo revela que há meses não abro a janela daquele lado. O leve ranger da porta, quando o vento sopra, conta uma história de dobradiças negligenciadas.

Não existem objetos inofensivos. Não existem silêncios neutros. Tudo deixa vestígio. Tudo tem voz.

É por isso que eu nunca descanso. Nunca consigo simplesmente “olhar” como os outros. O mundo inteiro é uma rede de fragmentos invisíveis, e eu sou condenado a vê-los todos.

O telefone antigo, de discagem rotativa, rompe meu devaneio. O som metálico corta a noite como navalha. Atendo na terceira chamada, porque sempre atendo na terceira. Na primeira, quem liga sente pressa; na segunda, ansiedade. Na terceira, desesperança. É sempre na terceira que a

verdade se derrama.

— Detetive Silveira? — a voz feminina chega trêmula, quase um sussurro.

Não pergunto quem é. Não preciso. O ritmo da respiração, a pausa antes de pronunciar meu nome, o tom embargado… tudo me fala mais que um currículo inteiro. É uma mulher de trinta e poucos anos, provavelmente acostumada ao controle. Agora, desfeita.

— Sou eu. — minha voz sai firme, mas baixa. — Diga o que aconteceu.

Ela hesita. O silêncio que se segue não é vazio, é sufocado. Posso ouvir o peso de alguém que segura palavras na garganta. Então, enfim, ela solta: — Meu marido foi encontrado morto. A polícia disse que foi acidente… mas eu sei que não foi.

Fecho os olhos por um instante. Sinto o velho arrepio no estômago. Não é surpresa. Não é

choque. É a confirmação inevitável de que mais uma história vai me arrastar para longe do sono.

— Conte-me o que viu. — insisto.

Do outro lado, apenas um suspiro trêmulo. A boca dela se abre para falar, mas não consegue. Não importa. Eu já ouvi o suficiente. Não preciso de todas as palavras para entender o que as pausas gritam.

— Endereço? — pergunto, direto.

Ela responde rápido, como quem teme ser ouvida. Cada número e cada sílaba me chegam em meio ao som da chuva que insiste em tamborilar contra o vidro. Pego meu caderno de anotações,aquele pequeno, de capa preta, onde rabiscos e códigos só fazem sentido para mim, e registro.

Quando desligo, deixo o silêncio voltar a ocupar a sala. O relógio de parede marca onze e quarenta e três. A rua está molhada, refletindo os postes como olhos amarelos, imóveis, assistindo a cidade respirar devagar.

Respiro fundo. Essa é a parte em que deveria hesitar, em que um homem comum pensaria se vale a pena sair em uma noite dessas. Mas eu não sou um homem comum. Nunca fui.

Eu não escolho os casos. Eles me escolhem.

Levanto-me devagar, pego o sobretudo escuro que repousa no cabide e o chapéu de aba caída.

No espelho, encontro meu reflexo: olhos cansados, frios, olhos de quem carrega fardos demais.

Não sei há quanto tempo deixei de ver como as outras pessoas. Talvez nunca tenha visto. Talvez tenha nascido assim.

Murmuro para mim mesmo, baixinho, como um ritual inevitável: — Mais uma vez… vou mostrar a alguém como o mundo realmente é.

E sei, com absoluta certeza, que a mulher do telefone jamais voltará a enxergar a vida como antes.

Porque ninguém, depois de ver o mundo pelos meus olhos, continua sendo a mesma pessoa.

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