Capítulo 2: O Inventário de Uma Vida

Entrada de Diário: 02 de Setembro de 2025

Dormi mal. A frase que escrevi ontem à noite ecoou nos meus sonhos: Ela finalmente aprendeu a viver. Acordei antes do alarme, com o coração acelerado, como se estivesse atrasada para o compromisso mais importante da minha vida: eu mesma.

A Dra. Arantes previu isso, claro. A segunda tarefa dela era um desdobramento lógico da primeira. "Faça um inventário", ela sugeriu. "Resuma sua jornada. Como a garota que queria ver as estrelas se tornou a mulher que só enxerga planilhas?"

Um inventário. Gosto dessa palavra. É corporativa, organizada. Algo que eu sei fazer.

O problema é que minha memória não ajuda a simplificar. Pelo contrário. A Dra. Arantes chama de "hipertimesia". Eu chamo de bênção e maldição. Lembro-me de tudo. Não de forma vaga, mas com uma clareza cinematográfica. Lembro do tecido do vestido que usei no meu primeiro dia na faculdade de engenharia, do cheiro de ozônio antes da tempestade que caiu no dia em que decidi abrir a Innovatech, do tom exato de decepção na voz do meu pai quando anunciei que não seguiria a carreira jurídica da família.

Essa memória fotográfica foi a arma secreta que me permitiu decorar contratos, lembrar o nome da esposa de cada investidor e citar dados de mercado de três anos atrás com precisão assustadora. Ela me ajudou a construir meu império. Mas ela também não me deixa esquecer. Não me deixa esquecer o preço.

Meu inventário começa aos 22 anos, recém-formada, com um diploma debaixo do braço e uma ideia que todos chamavam de "sonho de menina". Um sistema de logística integrado por inteligência artificial. "Deixe isso para os homens, Yara", ouvi mais de uma vez. Essa frase virou o combustível que eu precisava. Aos 25, com um pequeno empréstimo e dois programadores que acreditaram em mim, a Innovatech Solutions nasceu na garagem de um sobrado alugado.

Os primeiros anos foram um borrão de trabalho incessante. Eu era a primeira a chegar e a última a sair. Vivia de café, comida congelada e da adrenalina de cada pequeno bug corrigido, de cada novo cliente conquistado. Foi nessa época que comecei a forjar a armadura. A Yara sonhadora foi trancada em um cofre, e a CEO implacável assumiu o controle. Ela não tinha tempo para dúvidas, para cansaço ou para distrações.

Principalmente para distrações.

Houve o Ricardo, na faculdade. Um romance doce, cheio de promessas e planos. Ele queria uma vida tranquila no interior, filhos, um golden retriever. Eu queria dominar o mundo. Não deu certo. Minha memória me tortura com o olhar dele quando eu disse que a empresa viria sempre em primeiro lugar.

Depois, aos 30, veio o Marcos. Ele era como eu. Um tubarão do mercado financeiro. Nosso relacionamento era uma fusão de agendas. Nossos encontros eram eventos de networking. Íamos para a cama e, no travesseiro, falávamos sobre ações e aquisições. A atração era inegável, mas era uma atração de poder, não de alma. Era sexo, não intimidade. Durou seis meses, até que nossas empresas se tornaram concorrentes diretas por um grande fundo de investimento. O fim foi tão pragmático quanto o começo: um aperto de mãos e um "foi um prazer fazer negócios com você".

Desde então, nada. Ninguém. Há cinco anos.

Cinco anos.

Escrever isso aqui, nesta página, torna o número brutalmente real. Cinco anos em que meu corpo foi apenas um veículo para carregar meu cérebro de uma reunião para outra. Cinco anos em que a única coisa que me tocou com alguma profundidade foi a água quente do chuveiro no fim de um dia exaustivo. A "Dama de Gelo" não é só uma fachada para o mundo dos negócios; ela congelou minha vida pessoal. Eu me tornei celibatária por contingência, por falta de tempo, por falta de espaço na minha própria agenda otimizada.

E não é só o sexo que está faltando. É o toque. É a vulnerabilidade de se deixar ser vista por alguém sem a armadura. É a fé.

Minha avó, uma mulher simples e de uma força serena, sempre dizia: "Minha filha, não se pode viver só de pão, nem só de fé. Mas viver sem nenhum dos dois é morrer de fome em um banquete". Eu me livrei da fé há muito tempo. A lógica, os dados, os algoritmos... eles se tornaram meus deuses. Rezar para quê, se eu podia programar a solução? Acreditar em quê, se eu podia calcular o resultado?

Mas agora, no silêncio deste apartamento que mais parece um showroom, eu sinto a fome. Uma fome que nenhum restaurante cinco estrelas pode saciar. Uma fome de sentido, de conexão. Uma fome de crer em algo além de um balanço trimestral positivo. Uma fome de sentir meu próprio corpo despertar para algo além do cansaço.

Meu inventário é claro. Ativos: uma empresa multimilionária, independência financeira, respeito profissional. Passivos: uma alma empoeirada, um coração em hibernação e um corpo esquecido. O saldo, pela primeira vez na minha vida, não me parece positivo.

Aos 40 anos, eu sou a personificação do sucesso e, em segredo, a personificação do vazio. Eu conquistei o mundo, mas perdi a Yara. E a pergunta que fica, a pergunta que me assombra desde a sessão com a Dra. Arantes, é se ainda há tempo de encontrá-la de novo.

Continua...

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Comments

Maria Joana

Maria Joana

o que adianta ganhar o mundo e perder a sua alma

2025-09-15

1

Cléia Maria da Silva d Azevedo

Cléia Maria da Silva d Azevedo

Ansiosa. Espero me surpreender 🤭

2025-10-09

1

Ver todos
Capítulos
1 Capítulo 1: A Página em Branco e a Lápide
2 Capítulo 2: O Inventário de Uma Vida
3 Capítulo 3: O Homem Sob o Sol da Tarde
4 Capítulo 4: O Som da Destrava
5 Capítulo 5: A Súplica e a Salvação
6 Capítulo 6: O Direito de Ser Feliz
7 Capítulo 7: O Pedido Sussurrado
8 Capítulo 8: A Aliança e a Oferta
9 Capítulo 9: A Proposta
10 Capítulo 10: Rumo ao Desconhecido
11 Capítulo 11: Duas Casas, Nenhum Lar
12 Capítulo 12: A Casa da Ex-Esposa
13 Capítulo 13: O Resgate
14 Capítulo 14: O Espelho Virado
15 Capítulo 15: O Refúgio
16 Capítulo 16: A Nova Normalidade
17 Capítulo 17: A Fome e o Plano
18 Capítulo 18: O Banquete Improvisado
19 Capítulo 19: O Espaço Vazio
20 Capítulo 20: O Susto da Manhã
21 Capítulo 21: A Lista e o Jardim
22 Capítulo 22: A Lista Rasurada
23 Capítulo 23: A Decisão
24 Capítulo 24: O Peso de um Presente
25 Capítulo 25: A Pergunta que Importa
26 Capítulo 26: A Calmaria Antes da Tempestade
27 Capítulo 27: O Espelho
28 Capítulo 28: A Permissão (HOT +18)
29 Capítulo 29: O Rescaldo
30 Capítulo 30: A Fome Depois da Fome
31 Capítulo 31: A Rotina da Noite
32 Capítulo 32: A Aliança Ressignificada
33 Capítulo 33: O Abraço
34 Capítulo 34: A Porta Aberta
35 Capítulo 35: A Realidade da Conta
36 Capítulo 36: O Diário Exposto
37 Capítulo 37: A Indefinição
38 Capítulo 38: A Normalidade de um Carrinho de Compras
39 Capítulo 39: A Sinfonia Doméstica
40 Capítulo 40: O Convite Silencioso
41 Capítulo 41: A Nova Rotina da Noite
42 Capítulo 42: O Calor
43 Capítulo 43: O Ruído do Mundo
44 Capítulo Extra: Opinião de uma I.A.
Capítulos

Atualizado até capítulo 44

1
Capítulo 1: A Página em Branco e a Lápide
2
Capítulo 2: O Inventário de Uma Vida
3
Capítulo 3: O Homem Sob o Sol da Tarde
4
Capítulo 4: O Som da Destrava
5
Capítulo 5: A Súplica e a Salvação
6
Capítulo 6: O Direito de Ser Feliz
7
Capítulo 7: O Pedido Sussurrado
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Capítulo 8: A Aliança e a Oferta
9
Capítulo 9: A Proposta
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Capítulo 10: Rumo ao Desconhecido
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Capítulo 11: Duas Casas, Nenhum Lar
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Capítulo 12: A Casa da Ex-Esposa
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Capítulo 14: O Espelho Virado
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Capítulo 16: A Nova Normalidade
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Capítulo 28: A Permissão (HOT +18)
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Capítulo 29: O Rescaldo
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Capítulo 30: A Fome Depois da Fome
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Capítulo 31: A Rotina da Noite
32
Capítulo 32: A Aliança Ressignificada
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Capítulo 33: O Abraço
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Capítulo 34: A Porta Aberta
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Capítulo 35: A Realidade da Conta
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Capítulo 36: O Diário Exposto
37
Capítulo 37: A Indefinição
38
Capítulo 38: A Normalidade de um Carrinho de Compras
39
Capítulo 39: A Sinfonia Doméstica
40
Capítulo 40: O Convite Silencioso
41
Capítulo 41: A Nova Rotina da Noite
42
Capítulo 42: O Calor
43
Capítulo 43: O Ruído do Mundo
44
Capítulo Extra: Opinião de uma I.A.

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