A noite já havia cedido lugar ao amanhecer quando a carruagem dourada deslizava pela estrada sinuosa rumo ao Morro das Nuvens. Dentro dela, o silêncio era tão denso quanto o ar frio das montanhas.
Katara repousava deitada em um canto, seu corpo envolto por véus de energia dourada que o Primeiro Mestre cultivador havia deixado como barreira protetora. Seus suspiros fracos lembravam a cada instante que sua vida ainda pendia por um fio.
Kilni estava sentada do outro lado, os braços cruzados, o olhar cravado no chão. Cada fibra do seu ser ardia em ódio pelo homem à sua frente, mas também em medo de perder a irmã.
O Mestre a observava em silêncio, até que finalmente falou:
— Sei o que você sente.
Kilni ergueu os olhos como lâminas.
— Não, você não sabe. Não ouse dizer que entende a minha dor.
Ele sustentou o olhar dela sem piscar.
— Eu entendo mais do que imagina.
Kilni socou a parede da carruagem, fazendo a madeira tremer.
— Você matou meus pais! Você destruiu Quinuer! Tudo o que eu sou agora... tudo o que me tornei... é por sua causa!
A carruagem pareceu pesar sob aquelas palavras. Katara se mexeu levemente, mas permaneceu inconsciente.
O Mestre respirou fundo.
— Eu não fui o responsável pela ordem que caiu sobre Quinuer. Havia forças maiores em movimento. Mas sei que para você, não importa a verdade: eu serei sempre o monstro da sua infância.
Kilni se inclinou para frente, a voz como veneno.
— Então admita. Admita que deixou minha família morrer.
O Mestre fechou os olhos por um instante, e quando os abriu, neles havia apenas cansaço.
— Eu falhei. Isso é tudo o que tenho a dizer.
Kilni cerrou os punhos até o sangue escorrer de suas unhas cravadas na palma. A raiva queimava tanto que o Núcleo da Morte pulsava em seu peito, implorando para se libertar.
— Falhou...? — ela sussurrou, tremendo. — Não... você escolheu. E eu vou fazer você pagar.
O silêncio voltou, quebrado apenas pelo ranger das rodas na estrada.
O Mestre a encarou, sério.
— Você pode odiar-me quanto quiser, Kilni Quinuer. Mas lembre-se: se eu cair, sua irmã morre.
As palavras a atingiram como um golpe. Ela mordeu o lábio até sentir o gosto de sangue.
Naquele momento, Kilni percebeu que estava aprisionada. Não por correntes de ferro, mas por um destino cruel: depender justamente daquele que mais odiava.
A luz suave da manhã atravessava as cortinas da carruagem. O ranger das rodas nos pedregulhos marcava um ritmo constante, quase hipnótico.
Kilni abriu lentamente os olhos. Por um instante, não sabia se ainda estava sonhando. Ao seu lado, sobre um pequeno pano dobrado, havia pão fresco, algumas frutas e uma pequena jarra de água.
Ela se ergueu devagar, piscando várias vezes.
— Quando foi que... eu adormeci? — murmurou para si mesma, surpresa.
Não lembrava de ter cedido ao sono. O último que recordava era o peso da raiva queimando dentro de si, as palavras que cuspira contra o homem que mais odiava no mundo.
E agora, ali diante dela, o Primeiro Mestre Cultivador estava sentado com os olhos fechados, em profunda meditação. Seu corpo emanava uma aura dourada serena, como se fosse um sol em miniatura, respirando em compasso perfeito com o mundo.
Kilni o observou por alguns segundos, seus olhos escuros refletindo dúvida e rancor.
“Como é possível alguém como ele... alguém que destruiu minha vida... parecer tão... calmo?”
Ela olhou para a comida ao seu lado, depois para Katara ainda deitada, envolta na barreira de energia dourada que protegia sua vida frágil. A respiração da irmã estava mais estável, embora ainda fraca.
Kilni suspirou baixinho. Uma mistura amarga de sentimentos lhe corroía o peito: ódio, desconfiança... mas também uma pontada incômoda de gratidão.
— Maldito seja... — sussurrou, apertando o punho. — Até quando vai me prender nesse dilema?
Do outro lado, sem abrir os olhos, o Mestre falou calmamente, como se tivesse ouvido cada palavra.
— A raiva corrói, mas também fortalece. O que você fará com ela é o que definirá quem realmente é.
Kilni se sobressaltou.
— Está me espionando até quando está com os olhos fechados?!
Ele abriu os olhos lentamente, revelando aquele olhar sereno e inabalável.
— Não. Apenas escuto... mesmo o que você não diz em voz alta.
O coração de Kilni disparou em fúria. Ela desviou o olhar, mordendo o lábio.
O sol já estava alto quando a carruagem finalmente diminuiu a velocidade. O ranger das rodas cessou, substituído pelo som de vozes e passos. Kilni ergueu a cortina e viu diante de si uma pequena vila encravada nas montanhas, feita de casas de madeira simples, cercadas por terraços de cultivo verdejante.
— Paramos? — ela perguntou, desconfiada.
O Mestre abriu os olhos devagar e se levantou.
— Sim. Os cavalos precisam descansar... e vocês também.
Kilni franziu o cenho, lançando um olhar para Katara, ainda adormecida e protegida pela barreira dourada.
— E se esses camponeses descobrirem quem somos? Você pode confiar neles?
O Mestre abriu a porta da carruagem e desceu primeiro, sua presença imediatamente atraindo olhares respeitosos dos moradores. Homens e mulheres paravam seus afazeres para inclinar levemente a cabeça em reverência.
Kilni estreitou os olhos.
— Claro... todos se ajoelham diante dele... como se fosse um deus. — o pensamento lhe atravessou como uma lâmina amarga.
Relutante, ela desceu logo em seguida. Ao pisar na terra batida da vila, sentiu olhares curiosos sobre si. Seu corpo enrijeceu instintivamente, a mão direita pousando no punho da adaga que carregava na cintura.
Uma senhora idosa se aproximou com um cesto de frutas nas mãos. Ela se inclinou diante do Mestre e depois estendeu o cesto para Kilni.
— Para sua jovem acompanhante, Mestre. Ela parece cansada.
Kilni arregalou levemente os olhos, surpresa. Não estava acostumada a receber gestos de bondade de estranhos.
— Eu... — por um instante, não soube o que responder.
O Mestre a observou com aquele olhar sereno que tanto a irritava.
— Aceite. Não há veneno na generosidade.
Kilni pegou o cesto de frutas, mas logo se virou de costas, resmungando.
— Não preciso da sua lição...
O Mestre não respondeu, apenas caminhou em direção a uma estalagem simples. Seus discípulos, que viajavam em outra carruagem, começaram a cuidar dos cavalos.
Kilni ficou para trás por alguns instantes, olhando a vila. Havia crianças correndo, mulheres sorrindo enquanto carregavam cântaros de água, homens erguendo sacos de arroz nos ombros.
A cena era simples, comum... mas algo dentro dela se revirava.
“Esse mundo... já foi bonito assim para mim também. Antes que ele... destruísse tudo.”
Com os olhos escuros cheios de lembranças amargas, ela apertou o cesto de frutas e seguiu atrás do Primeiro Mestre, cada passo pesado como se marchasse contra o próprio destino.
A estalagem da vila era pequena, com mesas de madeira gastas pelo tempo e o cheiro forte de sopa quente preenchendo o ar. Moradores entravam e saíam em silêncio respeitoso, murmurando entre si ao perceberem a presença do Mestre.
Kilni se sentou numa mesa afastada, jogando o cesto de frutas sobre a madeira como se fosse um peso morto. Seus olhos escuros vagaram pelo salão, atentos a cada movimento.
O Mestre entrou em seguida, com passos calmos, e se sentou de frente para ela. Um jovem aprendiz logo trouxe duas tigelas fumegantes de caldo e pão fresco.
Kilni arqueou a sobrancelha.
— Não achei que um homem como você comesse comida tão... comum. Pensei que só se alimentasse da adoração cega dessas pessoas.
O Mestre levou a tigela aos lábios e bebeu em silêncio, sem se abalar com o veneno das palavras dela. Apenas depois respondeu:
— A fome é igual para todos. Reis e mendigos, santos e pecadores... todos precisam comer.
Kilni deu um riso curto e irônico.
— Ah, mas nem todos matam famílias inteiras, não é mesmo?
O ar pareceu congelar. O Mestre a encarou, seus olhos penetrantes refletindo uma calma que contrastava com o peso das acusações.
— Ainda carrega esse fardo como uma lâmina no peito. — ele disse baixinho. — Mas você não sabe toda a verdade, Kilni Quinuer.
Ela bateu a mão na mesa, atraindo alguns olhares curiosos dos aldeões.
— Não me venha com enigmas! Eu vi meus pais morrerem! Eu vi o sangue deles no chão! Não há verdade que justifique o que você fez!
O Mestre não recuou, sua voz firme mas serena.
— Não estou pedindo seu perdão. Apenas digo que um dia, a verdade virá até você. E quando isso acontecer, seu ódio não será mais suficiente para guiá-la.
Kilni o encarou, seus olhos faiscando raiva e dor.
— Meu ódio é a única coisa que me mantém viva. Tire isso de mim... e não sobra nada.
O silêncio pesado tomou conta da mesa. O Mestre voltou a beber sua sopa, como se a conversa tivesse terminado. Kilni, por sua vez, apertava tanto a colher em sua mão que o metal quase se entortava.
Lá fora, o vento das montanhas soprava forte, como se antecipasse a tempestade que ainda estava por vir.
A tigela diante de Kilni já estava fria. Ela não havia comido quase nada; o gosto da sopa lhe parecia amargo demais, como se fosse feito de lembranças indesejadas. Seus olhos permaneciam fixos na madeira da mesa, evitando encarar o homem à sua frente.
O silêncio era denso, até que um som suave rompeu o peso do ar.
— …Kilni…
A voz era fraca, quase um sussurro.
Kilni se levantou de imediato, seu coração disparando. Virou-se para ver Katara, deitada sobre uma cama improvisada ao lado, com o rosto pálido, mas os olhos abertos.
— Katara! — Kilni correu até ela, ajoelhando-se ao lado da irmã e segurando sua mão trêmula. — Não se esforce… ainda está fraca.
Katara sorriu, um sorriso delicado, mesmo com a dor evidente em seu corpo.
— Eu… achei que não acordaria… você estava tão séria… tão distante…
Kilni apertou sua mão, sentindo as lágrimas ameaçarem seus olhos, mas manteve a voz firme.
— Eu nunca vou deixar você. Nunca.
O Mestre se aproximou lentamente, sua presença preenchendo o ambiente. Kilni o olhou de relance, os olhos faiscando em alerta.
— Fique longe dela.
Ele, no entanto, se ajoelhou do outro lado da cama, olhando para Katara. Sua voz era calma, carregada de compaixão.
— Descanse, pequena. Logo chegaremos ao templo, e sua dor desaparecerá.
Katara piscou devagar, como se tentasse entender aquelas palavras.
— Você… é o homem que está ajudando Kilni?
Kilni apertou a mão da irmã com força.
— Não! Ele não é nosso aliado, Katara. Só está aqui porque é o único que pode… — sua voz falhou por um instante, e ela desviou o olhar. — … porque é o único que pode te salvar.
Katara virou o rosto em direção ao Mestre, seu sorriso fraco ainda presente.
— Então… obrigada.
Kilni arregalou os olhos, surpresa.
— Katara! Não agradeça a ele! Você não sabe… você não sabe quem ele…
Mas Katara apenas fechou os olhos novamente, mergulhando de volta em um sono leve, sua mão ainda presa entre as de Kilni.
O silêncio voltou a dominar o quarto. Kilni olhou para o o primeiro mestre, ódio queimando em seu peito.
— Não pense que esse agradecimento significa algo. Ela não sabe que você fez.
O Mestre a encarou com serenidade, sem rebater. Apenas disse:
— Às vezes… a pureza enxerga o que a raiva insiste em apagar.
Kilni mordeu o lábio com tanta força que quase sangrou. A única coisa que a impedia de atacá-lo ali mesmo era a mão frágil de Katara segurando a sua.
O céu da manhã estava limpo, com nuvens claras que se arrastavam lentamente sobre os picos das montanhas. A carruagem voltava a ranger, descendo por estradas estreitas, ladeadas por penhascos e bosques cobertos de neblina.
Kilni acordou cedo, seus olhos castanhos ainda pesados pela falta de sono. Passara a noite inteira vigiando Katara, temendo que o frágil fio de vida de sua irmã se rompesse de uma hora para outra.
Quando afastou a cortina da carruagem, seu coração se apertou. Ao longe, erguendo-se como um titã de pedra e nuvens, estava o Morro das Nuvens. Seu topo estava oculto por brumas densas, e a luz dourada do sol da manhã refletia nas paredes de pedra como se o próprio céu se inclinasse para adorá-lo.
Kilni arregalou os olhos, uma mistura de medo e ódio percorrendo suas veias.
— …Já estamos tão perto assim? — murmurou, sentindo os dedos tremerem.
Do outro lado da carruagem, o Mestre cultivador mantinha sua postura ereta, de olhos fechados, como se nada pudesse abalá-lo. Sua aura permanecia calma, constante, como se fosse parte da própria paisagem.
Kilni, no entanto, sentia o oposto. Seu peito ardia, seu estômago se revirava. Cada pedra daquela montanha trazia de volta lembranças do sangue de seus pais, das chamas que consumiram Quinuer, dos gritos que ecoavam em sua mente.
— Você… — ela começou, a voz carregada de veneno. — Você me trouxe para o mesmo lugar de onde ordenou a morte dos meus pais… e espera que eu apenas sente aqui, obediente, como uma boneca quebrada?
O Mestre abriu os olhos lentamente, sua expressão serena como sempre.
— Não trouxe você. Trouxe sua irmã.
Kilni cerrou os punhos, as unhas cravando nas palmas das mãos.
— Não ouse usar Katara como desculpa para me arrastar até esse maldito lugar!
Ele a encarou firme, sem se intimidar.
— Então diga… Kilni Quinuer. Se pudesse salvar sua irmã em qualquer outro lugar, você teria aceitado minha ajuda?
A pergunta a atingiu como uma lâmina invisível. Kilni abriu a boca, mas nenhuma palavra saiu. A verdade era cruel demais para ser negada.
Ela desviou o olhar, mordendo o lábio até sentir o gosto de sangue. .
— Maldito seja… — sussurrou. — Maldito seja por me dar razão e, ao mesmo tempo, me prender ao seu jogo.
A carruagem seguiu em frente, e o Morro das Nuvens parecia se aproximar cada vez mais, como se a própria montanha os observasse, aguardando o desenrolar daquele destino inevitável.
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Atualizado até capítulo 23
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