Os anos haviam passado como a maré que lentamente apaga os castelos na areia. Isabella e Rafael já não eram os adolescentes do piano e das promessas sussurradas no Solar Arlott. Agora, eram adultos que carregavam nos ombros não apenas o peso do sobrenome, mas também as cicatrizes invisíveis de uma juventude moldada à sombra de expectativas.
Naquela manhã, o ar em Valmont trazia o cheiro do pão recém-assado vindo da cozinha principal. Isabella, vestida em seda azul, cruzava o corredor em direção ao salão de reuniões, onde seu avô ainda coordenava os negócios da família, apesar da idade avançada. Rafael, por sua vez, andava em outra direção: buscava silêncio nos jardins, afastando-se do barulho das decisões e da presença cada vez mais firme da herdeira.
Foi nesse caminho que ele a encontrou.
Clara, filha da cozinheira, emergiu do portão lateral trazendo uma cesta de frutas frescas. Seus cabelos castanhos estavam presos em um coque simples, e os olhos cor de mel carregavam uma doçura imediata. Não tinha a postura erguida das damas da alta sociedade, mas um jeito tímido que parecia pedir desculpas por existir. Rafael se surpreendeu ao vê-la; crescera ao lado dela, mas raramente lhe dera atenção — afinal, Clara sempre fora apenas “a filha da cozinheira”.
— Bom dia, senhor Rafael — disse ela, com um sorriso que parecia tímido demais para ser calculado.
Ele respondeu com um aceno rápido, mas Clara não desviou o olhar. Em vez disso, abaixou a cesta no banco de pedra do jardim e apoiou a mão no peito, como se sentisse uma dor repentina.
— Está tudo bem? — Rafael se aproximou, instintivo.
— Só… uma tontura. Tenho tido umas crises, mas não quero preocupar mamãe — murmurou, deixando o rosto empalidecer.
A palavra “crises” ecoou como um chamado à sua responsabilidade. Rafael, moldado para proteger, para carregar, não conseguiu ignorar. Ela parecia tão frágil diante dele que uma onda de compaixão cresceu em seu peito — e junto dela, algo perigoso: o desejo de protegê-la.
Clara levantou os olhos e sorriu, ainda que com esforço. — É estranho, não é? Crescemos na mesma casa, mas parece que só agora você me enxerga.
Rafael ficou em silêncio. E, nesse silêncio, Clara plantou a primeira semente da dúvida.
Isabella, naquele mesmo instante, atravessava o salão de mármore em direção ao avô. Seu vestido arrastava no chão como ondas silenciosas. Ela não sabia, mas do lado de fora, no banco de pedra do jardim, a história começava a ser escrita contra ela — por mãos que não tinham poder, mas que sabiam muito bem como fingir fraqueza.
Rafael permaneceu ao lado de Clara mais tempo do que imaginara. O banco de pedra do jardim, antes apenas um ponto de descanso, transformou-se em palco de uma conversa que ele não sabia se desejava ou se apenas fora arrastado para ela.
— Eu sei que não deveria incomodá-lo com isso — Clara disse, olhando para baixo, os dedos girando nervosos a alça da cesta —, mas às vezes sinto que não pertenço a lugar nenhum. Cresci nesta casa, mas nunca fiz parte dela de verdade.
As palavras ressoaram em Rafael como um espelho distorcido de si mesmo. Ele se lembrava bem do dia em que atravessara aqueles portões como um intruso, carregando apenas uma mochila gasta. Recordava-se do peso de não ser “de sangue” Arlott. E, por um instante, viu em Clara um reflexo da sua própria história.
— Você pertence mais do que imagina — murmurou, tentando consolá-la. — Nem sempre é fácil… mas você é forte.
Clara ergueu os olhos úmidos e, com um sorriso quase infantil, tocou de leve a mão dele. — É fácil dizer que sou forte quando não vê o quanto dói.
Rafael não recuou. Não soube se foi piedade ou identificação que o impediu de afastar a mão. O gesto foi breve, mas suficiente para que Clara percebesse o que precisava: ele estava vulnerável.
Enquanto isso, Isabella cruzava o salão em direção à biblioteca. O avô a esperava com documentos e uma xícara de café forte. Ela se orgulhava de estar cada vez mais presente nos negócios, assumindo responsabilidades que antes pertenciam somente aos homens da família.
— Está pronta para assinar os contratos da nova parceria agrícola? — Augusto perguntou, analisando o rosto da neta.
— Estou. — Isabella respondeu com firmeza, ajeitando a postura. — Quero que o nosso nome continue sendo sinônimo de prosperidade.
O patriarca sorriu com satisfação, mas seus olhos revelavam algo mais profundo: ele percebia que Isabella já não era apenas a neta protegida, e sim a futura líder.
Mas o destino, irônico como sempre, tecia outra trama lá fora.
No jardim, Clara suspirou com um ar frágil. — Eu só não queria que pensassem mal de mim… ou que dissessem que invento coisas. Já sofri tanto com comentários cruéis.
— Quem diria isso? — Rafael franziu o cenho, preocupado.
Clara mordeu o lábio, hesitando como se guardasse um segredo pesado. — Eu não deveria falar, mas… às vezes sinto que Isabella me olha como se eu fosse um peso. Sei que ela não gosta muito da minha presença por aqui.
O nome de Isabella caiu entre eles como uma pedra na água, criando ondas. Rafael não respondeu de imediato. Uma parte dele sabia que a herdeira sempre tratara os empregados com respeito, ainda que com a distância própria de sua posição. Mas outra parte — a mais frágil — lembrou-se das pequenas diferenças de tratamento que ele mesmo sofrera nos primeiros anos.
E assim, sem perceber, Clara cavava o fosso da desconfiança.
— Não dê ouvidos a isso… — Rafael disse por fim, mas sua voz não soava tão firme quanto gostaria.
Clara sorriu, satisfeita com a pequena fissura que abrira. — Obrigada por acreditar em mim, Rafael. Você não sabe o quanto isso significa.
Ele se levantou, ajeitando o paletó, tentando encerrar o assunto. — Preciso voltar. Mas… se sentir-se mal novamente, venha me procurar.
A promessa foi feita. E Clara, escondendo a vitória atrás de um olhar doce, sabia que bastava usá-la no momento certo.
De volta ao Solar, Isabella assinava os documentos sob a supervisão do avô. Não imaginava que, ao mesmo tempo, um novo jogo começava no jardim. E que, em breve, o noivo prometido começaria a enxergar nela aquilo que nunca existira — não por seus próprios olhos, mas pelos véus de mentira costurados por outra.
E foi assim que, silenciosamente, a traição começou a nascer.
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Atualizado até capítulo 47
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