— Eu me chamo Ayla — repetiu a jovem, agora mais próxima, a voz embargada pela hesitação e pelo frio da madrugada.
Aurora se virou devagar, os olhos azuis tão gélidos quanto o vento cortante que soprava pelas ruas de pedra. Avaliou a garota de cima a baixo: cabelos negros desalinhados, olhos verdes grandes demais para aquele rosto delicado, a pele exposta e arrepiada. Vestia um casaco fino, gasto. A bolsa ao lado parecia tão antiga quanto a cidade.
— Qual o seu nome? — insistiu Ayla. — Eu preciso agradecer o que você fez por mim.
Aurora jogou o cigarro no chão e o pisou com indiferença.
— Não precisa. Você não me deve nada.
— Preciso sim. — Ayla cruzou os braços, tentando se aquecer. — Meus pais me ensinaram a ser grata.
— O mesmo pai que te vendeu num jogo clandestino? — rebateu Aurora, com a voz baixa, mas cortante.
As palavras feriram. Ayla desviou o olhar, engolindo a dor com um silêncio breve. Os olhos marejaram, mas ela permaneceu firme.
— Eu sei que o que ele fez não foi certo... — disse, quase num sussurro. — Mas ele é só um homem doente.
— Não me pareceu doente. Pareceu um canalha — disse Aurora com desdém.
Ayla assentiu, resignada. Aquela conversa não levaria a lugar nenhum. Mas algo dentro dela se recusava a desistir.
— Você ainda não me disse seu nome — murmurou, levantando os olhos de novo.
— Por que quer saber? Já te disse: está livre. Vá embora.
— Quero agradecer.
Houve uma breve pausa. Aurora suspirou, vencida pelo incômodo daquela insistência.
— Aurora. Me chamo Aurora.
Ayla repetiu o nome como quem experimenta algo raro na boca.
— Nome bonito — disse, sincera.
Aurora arqueou uma sobrancelha. Um elogio? Ela não ouvia algo assim fazia muito tempo.
— Pronto. Agora já sabe. Pode ir.
Aurora se virou, dando alguns passos.
— Espera.
Ela parou. Respirou fundo e virou apenas o rosto.
— O que você quer, garota?
Ayla hesitou. Juntou as mãos na frente do corpo e cruzou os dedos finos. Encarou o chão por um instante, depois os olhos de Aurora.
— Eu tenho uma dívida com você.
— Não. Não tem. — Aurora franziu a testa, sem esconder a irritação. — Eu não quero nada de você.
— Mas eu tenho. Não gosto de dever nada a ninguém.
Aurora cruzou os braços. A voz saiu mais dura agora:
— E pretende pagar como, exatamente? Não parece que tem dinheiro.
Seus olhos varreram Ayla da cabeça aos pés. Casaco gasto, sapatilhas finas, tudo dizia pobreza. Mas a postura ereta dizia algo diferente.
— Não... eu não tenho. — Ayla respondeu, a voz mais fraca. — Mas posso trabalhar. Posso limpar, cozinhar, lavar... até...
Fez uma pausa. Corou até a raiz dos cabelos.
— ... até dormir com você, se quiser.
Aurora piscou lentamente. Um sorriso quase invisível se desenhou nos lábios.
— Já fez isso antes? Dormir com alguém?
Ayla abaixou o olhar. O rosto queimava.
— Não.
— Então por que me oferece isso?
— Porque... talvez eu seja bonita. É o que os amigos do meu pai dizem.
Aurora soltou uma risada baixa, sem humor.
— Você tem coragem, garota. Mas não é necessário. Eu não quero dormir com você. Para isso, já tenho as melhores garotas de Porto Della Luce à disposição. E elas são profissionais.
Ayla mordeu o lábio inferior. Ainda assim, não recuou.
— Só me dê trabalho. Qualquer coisa. Eu não tenho para onde ir agora. Depois que você matou aquele homem... meu pai fugiu.
Aurora fechou os olhos por um breve segundo, lutando contra a torrente de verdades que queria desaguar. Queria explicar que o pai da garota não havia fugido, que na verdade, os homens dela o levaram para uma “lição” inesquecível. Mas ela conteve as palavras afiadas que ameaçavam escapar de seus lábios.
— Tchau, garota. Você é jovem. Vai encontrar outro lugar. Um emprego decente e seguro.
Com um suspiro pesado, Aurora deu as costas à jovem e caminhou em direção ao sedã preto, que estava estacionado sob a luz bruxuleante e amarelada de um poste. A noite envolvia tudo ao redor como um manto escuro, e as sombras dançavam nas paredes dos prédios próximos.
Foi então que o som cortou o silêncio. Clack... clack... clack... O ruído úmido e ritmado das sapatilhas finas de Ayla ressoava contra o piso molhado de pedra atrás dela. Aurora parou, a expressão em seu rosto uma mistura de incredulidade e cansaço, como se o peso do mundo pendesse sobre seus ombros.
— Você não vai desistir?
Ayla negou com a cabeça, seus olhos brilhando com determinação sob a luz fraca.
— Eu já disse... te devo a vida.
Aurora a olhou por um longo tempo. Um silêncio excruciante caiu entre elas. O tipo de silêncio que antecede uma escolha que não pode ser desfeita.
Sem dizer mais nada, Aurora apertou o controle. Um clique suave. O carro destravou.
Ela deu a volta, abriu a porta do passageiro e indicou com um gesto ríspido.
— Entra.
Ayla hesitou apenas um segundo. Depois, com passos curtos, entrou no carro e sentou-se no banco, encolhida, como quem entra num santuário profano.
Aurora fechou a porta com firmeza.
Passou no banco do motorista e ligou o motor.
O ronco grave ecoou pelas vielas molhadas da cidade, quebrando o silêncio da madrugada.
Enquanto guiava pelas ruas escuras, Aurora murmurou algo para si mesma, sem encarar a garota ao lado:
— Eu sei que vou me arrepender disso...
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Atualizado até capítulo 63
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