““Auroraaaa!”
O grito ecoou dentro dela. A lembrança veio com força: olhos azuis arregalados, sangue respingando no chão do quarto, o som abafado de um corpo tombando. E o grito — aquele grito que perfura os ossos.
Abriu os olhos. Inspirou fundo. O cheiro de fumaça e perfume forte não bastava para afastar a dor.
Levou o copo aos lábios. A cicatriz no ombro ardeu — ainda ardia, mesmo depois de seis anos.
As noites em Porto Della Luce tinham cheiro de vinho velho, maresia e segredos. A névoa se acumulava nas esquinas de pedra como um véu sobre os pecados da cidade.
No coração do submundo, onde políticos e empresários apertavam mãos sujas com luvas de couro, escondia-se o Salone Nero — um cassino onde as apostas eram tão altas quanto as condenações.
O salão era sufocante em elegância: lustres de cristal pendiam sobre o teto abobadado com afrescos dourados, as paredes forradas de veludo vinho abafavam o som dos pecados cometidos ali. O jazz tocava baixo, vindo de um quarteto ao fundo. Taças tilintavam, fichas deslizavam pelas mesas, sorrisos falsos se escondiam atrás de charutos e taças de conhaque e risadas escandalosas de mulheres seminuas entretendo homens pais de família.
Num canto reservado, Aurora Marchezzi cruzava as pernas longas e expunha a cicatriz no ombro como quem exibia uma joia. Usava um vestido preto de seda que desenhava sua figura magra e atlética. Os cabelos loiros estavam presos em um coque perfeito. Os olhos de um par de safiras azuis, frios como aço, observavam o salão com tédio e indiferença.
Ela segurava um copo de cristal. Dentro, o brilho âmbar de um Dalmore 62, mais raro de sua coleção — um luxo que quase ninguém ali reconheceria. Tomou o segundo gole com calma, sentindo o calor escorrer pela garganta até o peito. O gosto era amargo, profundo, quase metálico. Como sangue.
Tomou outro gole de uísque.
Foi então que ouviu.
Dessa vez não foi dentro da cabeça, mas no mundo real.
— Me solta... por favor, isso não é possível...
Aurora virou o rosto devagar, os olhos semicerrados, como quem desperta de um pesadelo e encontra outro, de pé.
Perto do balcão, um homem corpulento — Bernardo Bianchi, viciado em jogatina, falido, nojento — segurava com força o braço de uma garota. A menina não devia ter mais de vinte e poucos anos. Tinha cabelos negros desalinhados, pele clara, e olhos verdes que brilhavam mais de raiva do que de medo — uma pureza que contrastava violentamente com a podridão ao redor.
Ela estava deslocada ali. Vestido simples que marcava sua silhueta fina, sapatos gastos, dignidade intacta. Tudo nela destoava daquele antro de vícios.
— Papai? Do que ele está falando? Que dívida? Me solta! Você está me machucando!
O homem balbuciava, incoerente, os olhos fixos nas cartas inúteis sobre a mesa, evitando o olhar da filha. — Eu… eu ia ganhar a próxima mão, filha… eu juro… era minha chance… eu ia recuperar tudo…
Bernardo sorriu. Aquele tipo de sorriso que Aurora conhecia bem: de quem se acha dono da vida alheia.
— Seu pai apostou. Perdeu. E eu ganhei. É simples, querida.
A garota tentou se soltar. Ele apertou mais. Ela mordeu os lábios para não chorar.
Aurora observava. Sem piscar.
O salão continuava vivo — risos, apostas, ignorância fingida. Ninguém ousava se meter.
Ela então se levantou. Calma. Sem pressa. Seus saltos estalaram no chão de mármore como tiros abafados.
O segurança ao lado tentou dizer algo, mas parou ao ver o olhar dela. Sabia que não se interrompia Aurora Marchezzi.
Ela parou a poucos passos de Bernardo.
— Bernardo. — disse, sem emoção.
Ele se virou, rindo com escárnio. — Senhora Marchezzi... me desculpe o escândalo. Só estou levando o que é meu.
— Quanto? — perguntou Aurora, arrancando uma mala de couro da mesa ao lado com um movimento decidido. Atirou-a sobre o balcão e abriu com um gesto firme. Dentro, pilhas de notas, perfeitamente organizadas, reluziam à luz fraca.
— O quê?
— Quanto por ela? — repetiu, sua voz baixa e cortante.
Bernardo explodiu em uma gargalhada, como se Aurora tivesse contado a piada mais absurda já ouvida.
— Ela não está à venda — declarou, seu tom agora mais sério. — O pai dela jogou. E perdeu. Isso aqui é legal, Marchezzi. Você sabe muito bem...
Aurora fechou a mala com um estalo seco.
— Pena. — sussurrou ela, com uma expressão fria e determinada. Com um movimento quase imperceptível, deslizou a mão pela lateral do corpo, levantando suavemente a barra do vestido. O tecido macio cedeu, revelando o brilho negro polido de sua Walther PPK oculta no coldre preso à sua coxa. Num gesto fluido e preciso, ela retirou a arma de seu esconderijo, pronta para o que viesse a seguir.
O som do disparo ecoou como uma batida de tambor abafada.
Bernardo caiu para trás, os olhos ainda arregalados, um buraco no meio da testa. A garota gritou. O salão silenciou.
Aurora se virou para o segurança.
— Limpem isso.
Depois olhou para a garota.
— Você está livre. Pode ir embora.
Ela começou a andar, sem olhar para trás.
Passou pela porta principal do Salone Nero sem pressa, enquanto um dos seguranças o colocava um sobretudo, deixando os murmúrios crescidos atrás de si como poeira levantada por um desastre.
Lá fora, o frio da madrugada a recebeu com um sopro cortante. A brisa salgada do mar atravessava os becos. Aurora acendeu um cigarro e deu uma tragada, mas tossiu levemente. O gosto do tabaco parecia mais amargo naquela noite.
Ela deu o segundo trago, olhando para o céu encoberto. Nenhuma estrela visível.
Atrás dela, passos apressados.
— Mulher...!
A voz era doce e melódica.
Aurora não se virou.
— Ei... — disse de novo a jovem, com a respiração ofegante. — Por favor... espera...
Aurora soltou a fumaça devagar, sem dizer nada.
— Eu me chamo Ayla…
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 63
Comments
Rafaela Silva
.já gostei 😸
2025-08-29
0