A Chegada dos Olhos de Londres

Capítulo 4 – A Chegada dos Olhos de Londres

A notícia chegou à vila como chegam as tempestades: rápida, inesperada e incômoda.

Um mensageiro a cavalo atravessou a praça de Elmridge com um envelope selado com cera azul. Era uma cor incomum, que Charles reconheceu de imediato — o selo da Câmara dos Lordes. Ao abrir a carta, sentiu o peito apertar com uma familiar mistura de frustração e expectativa.

> “Prezado Charles,

Informamos que uma comitiva do Conselho de Obras e Planejamento estará em Elmridge em três dias, a fim de avaliar o andamento da reconstrução e a viabilidade de seus projetos futuros.

A presença de Lady Clarissa Vane, patronesse da Comissão de Filantropia e Reconstrução, será parte da comitiva.”

Charles dobrou a carta com calma — ou algo que imitava calma — e a guardou no bolso. Clarissa Vane. Uma sombra do passado. Bela, ambiciosa, manipuladora. E filha de um marquês com mais conexões que princípios.

Ele caminhou até a escola, onde Amélia orientava um grupo de meninas com livros doados. Quando o viu se aproximar, ela sorriu, mas o sorriso murchou ao notar sua expressão.

— O que houve?

— Teremos visitas. De Londres. Uma comitiva para “avaliar” o progresso das obras.

— E isso é ruim?

— Depende de quem vem com ela. Neste caso… sim. Clarissa Vane estará entre eles.

Amélia ergueu uma sobrancelha.

— Uma conhecida sua?

— Digamos que ela é alguém que está mais interessada em títulos do que em tijolos.

— Ah — disse Amélia, com um tom neutro, mas uma sombra breve cruzou seus olhos. — E o senhor?

— Eu? — Charles sorriu. — Continuo preferindo pedras bem assentadas a promessas vazias.

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Nos dois dias seguintes, Elmridge se agitou como nunca. Moradores varreram ruas, crianças ajudaram a pintar muros reaproveitados, e Charles se viu revisando projetos à luz de velas, com Amélia sempre ao seu lado.

— Está nervoso? — ela perguntou, certa noite, quando terminaram de revisar os planos da praça.

— Um pouco. Clarissa tem o dom de transformar elogios em armadilhas e olhares em julgamentos. Ela não está vindo para ajudar — está vindo para se posicionar.

— Então mostremos a ela que Elmridge não precisa da aprovação dela para existir.

— Mas talvez precise da verba.

Amélia cruzou os braços.

— E você pretende conquistá-la?

Charles hesitou.

— Pretendo… convencer a comissão. Não Clarissa.

Ela assentiu devagar, mas a dúvida havia sido plantada.

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Na manhã seguinte, a carruagem chegou em meio a uma névoa úmida, como se a própria natureza tentasse esconder a presença indesejada. Lady Clarissa desceu com elegância estudada, usando um vestido azul celeste com detalhes prateados e um chapéu que mais parecia uma obra de arte arquitetônica por si só. Seus olhos percorreram Elmridge com um misto de surpresa e desprezo mal disfarçado.

— Charles — disse ela, com um sorriso felino —, como é… bucólico tudo isso.

— Clarissa. Bem-vinda a Elmridge.

Ela ofereceu a mão enluvada, e ele a tocou apenas por obrigação. Atrás dela, três homens de cartola e expressão aborrecida desceram. A comitiva estava completa.

— E quem é esta dama? — Clarissa perguntou, ao notar Amélia se aproximando com uma prancheta.

— Amélia Lambert, diretora da escola da vila e minha colaboradora mais próxima — disse Charles com firmeza.

Amélia curvou a cabeça.

— Lady Clarissa.

— Diretora de escola? — Clarissa ergueu uma sobrancelha. — Quantos alunos analfabetos a senhorita supervisiona?

— O suficiente para saber que ignorância não está ligada ao berço — respondeu Amélia, num tom educado, porém cortante.

Charles conteve um sorriso.

— Vamos começar a inspeção?

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Durante a visita guiada, Charles apresentou cada ponto da reconstrução: a nova fundação do mercado, a estrutura da futura biblioteca, o plano de canalização da água e a restauração das casas ao redor da praça. Clarissa mantinha uma expressão entediada e anotava em um pequeno caderno de couro.

— E quem aprovou esses traços arquitetônicos tão… simples? — ela perguntou, diante da planta da escola.

— A simplicidade permite flexibilidade, e a flexibilidade é necessária quando se trabalha com escassez de recursos — explicou Charles, paciente.

— Ou falta de ambição estética.

Amélia respirou fundo, mas não falou. Charles, porém, ergueu os olhos para ela e respondeu:

— Quando se vive entre escombros, Clarissa, beleza se mede pelo teto que se tem sobre a cabeça.

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Ao final do dia, a comitiva se instalou em uma antiga pousada reformada. Charles caminhava sozinho até a igreja abandonada, onde pretendia desenhar um novo projeto para reaproveitamento do espaço. Mas encontrou Amélia no caminho.

— Ela o pôs à prova o dia inteiro — disse ela.

— E você?

— Eu apenas confirmei o que já sabia: pessoas como ela não veem Elmridge como um lugar. Veem como um obstáculo. Ou um espetáculo.

Charles parou diante dela, estudando-a.

— Ela viu você, Amélia. E viu o que somos.

— E o que somos?

Ele hesitou, aproximando-se um passo.

— Algo que não cabe nos relatórios dela.

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Mais tarde, quando já era noite, Clarissa apareceu na casa provisória de Charles sem ser convidada. Trazia uma garrafa de vinho e um sorriso de lembrança.

— Você ainda gosta de vinho francês?

— Gosto de água limpa, Clarissa. Ultimamente, tenho tido pouca coisa além disso.

Ela entrou mesmo assim, sentando-se perto da lareira apagada.

— Sabe, Charles, você sempre teve esse talento ridículo para se apegar a causas perdidas. Mas veja onde está agora… construindo castelos de barro.

— E você? Ainda tentando salvar sua imagem investindo em obras que não entende?

— Elmridge pode render um bom discurso no Parlamento, se for bem contado.

— Isso não é uma história. É a vida de pessoas reais.

Clarissa o encarou por um momento.

— Você não ama este lugar, Charles. Você está fugindo.

— Fugindo de quê?

— De Londres. Da sua posição. De mim.

— Clarissa… — ele se levantou. — Não estou fugindo. Estou finalmente construindo algo que importa.

Ela se aproximou e, num gesto rápido, segurou sua mão.

— E aquela mulher? A professora? A bastarda? Vai colocar o nome Ashcombe ao lado do dela?

Charles afastou a mão com firmeza.

— O nome Ashcombe não me define. Meus atos, sim. E ela, Clarissa, tem mais valor que muitos nobres reunidos.

Clarissa o observou por um longo instante, antes de virar-se para sair.

— Muito bem. A comissão dará sua resposta em dois dias. Espero que esteja preparado.

E com isso, ela se foi, deixando Charles sozinho, com a chama apagada da lareira e o coração em chamas.

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Na manhã seguinte, Amélia evitou Charles durante quase todo o dia. Quando finalmente se cruzaram, ela falava com Peter Lambert e outras duas senhoras da vila.

— Você foi visto com ela — disse Peter, ao perceber a aproximação de Charles. — A vila comenta.

— E a vila não tem mais o que fazer? — retrucou Charles.

— Só queremos saber se a reconstrução será um projeto para Elmridge… ou para o prestígio de Londres.

— Elmridge é o único motivo pelo qual estou aqui.

Amélia encarou-o por um momento, como se buscasse nele uma confirmação silenciosa.

— Espero que continue sendo.

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Naquela noite, Charles escreveu em seu diário:

> “A construção de uma vila é feita de pedras.

A construção da confiança, de escolhas.

E talvez seja mais difícil erguer pontes entre corações do que entre margens de um rio.”

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