Sob as Cinzas

Capítulo 3 – Sob as Cinzas

O céu de Elmridge amanheceu carregado naquela manhã, tingido de tons cinzentos que anunciavam uma chuva iminente. Charles Ashcombe, com as botas já sujas de terra e os cabelos desalinhados pelo vento, atravessava a vila com passos determinados. O esboço da nova praça havia sido aprovado pela maioria dos moradores, e os trabalhos avançavam. Mas a verdadeira razão de seu andar apressado era outra: ele procurava Amélia.

Ela não estava na escola, nem na tenda de suprimentos. Por fim, a encontrou próxima ao antigo moinho, sozinha, com um livro fechado no colo e um olhar perdido nas nuvens.

— Está escondida do mundo, senhorita Lambert?

Ela ergueu os olhos devagar, e a expressão dela pareceu abrandar ao vê-lo.

— Estou apenas… respirando.

— Um direito justo. Mas confesso que não consigo respirar direito sem ouvir sua voz organizando todas as frentes de trabalho da vila.

Amélia sorriu com a leveza que só aparecia quando ela se permitia.

— Hoje achei que a vila poderia passar uma manhã sem minha vigilância.

Charles sentou-se ao lado dela, sobre a mesma pedra onde ela estava.

— Quando saí de Ashbourne, pensei que encontraria cinzas e caos. Encontrei cinzas, sim, mas também encontrei… você.

Ela baixou o olhar.

— Eu não costumo ser parte do que os nobres esperam encontrar.

— Ainda bem. Você não é comum, Amélia.

Houve um silêncio que não era desconfortável, mas carregado de algo tênue e novo. As folhas farfalhavam acima deles, e os pássaros, indiferentes à tensão humana, continuavam seu canto.

— O senhor realmente pretende construir uma biblioteca aqui? — ela perguntou, como se tentasse fugir daquele momento.

— Pretendo. E, se me permitir, gostaria que você a administrasse.

Ela o olhou, surpresa.

— Eu?

— Você já dirige uma escola com as próprias mãos, ensina crianças, coordena adultos… E conhece esta vila melhor do que qualquer um.

Amélia pareceu hesitar. Havia algo no brilho dos olhos dela que oscilava entre orgulho e temor.

— Agradeço a confiança, mas… talvez seja cedo para decisões como essa.

— Ou talvez seja tarde demais para adiar o que já sabemos — ele disse, num tom mais suave. — O que você teme, Amélia?

Ela ficou em silêncio por um instante, depois se levantou devagar.

— Não é o que eu temo, senhor Ashcombe. É o que os outros fariam se soubessem quem eu sou.

Ele também se levantou, mas não insistiu. A frase pairou no ar como um sussurro de tempestade prestes a estourar.

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Mais tarde naquele dia, Charles seguiu para a escola com o intuito de revisar a estrutura do teto, que seria reforçado com novas vigas. Ao entrar, notou que algumas crianças permaneciam nas salas, desenhando com pedaços de carvão e papel reaproveitado.

— Senhor Charles! — gritou uma menina, correndo até ele com um esboço nas mãos. — Fiz uma casa com chaminé, igual as que o senhor mostrou!

Ele se abaixou para olhar.

— É maravilhosa, Rose. Você será uma grande arquiteta um dia.

— Minha mãe diz que meninas não constroem casas.

— Sua mãe nunca conheceu minha mãe — ele disse, sorrindo.

Enquanto observava os desenhos, Charles ouviu passos atrás de si. Ao virar-se, deu de cara com um homem alto, de expressão austera, com a barba por fazer e os olhos atentos demais.

— Lorde Ashcombe, presumo? — disse o homem, com voz rouca.

— Charles Ashcombe, sim. E o senhor é…?

— Peter Lambert. Tio de Amélia.

Charles endireitou os ombros. O tom do homem era direto, quase agressivo. E havia algo em seus olhos que o incomodava.

— Veio visitar a escola?

— Vim lembrar-lhe que nem tudo que brilha em Elmridge é ouro. Minha sobrinha tem… passado complicado.

— Todos têm, senhor Lambert.

— Mas poucos com um pai visconde e uma mãe criada.

Charles o encarou. A informação o pegou de surpresa, mas não o abalou.

— Amélia não é responsável pelas escolhas do pai. Ou pelas ausências dele.

— Talvez. Mas cuidado ao misturar títulos com sangue bastardo. A nobreza não perdoa escândalos, por mais nobres que sejam as intenções.

E com isso, o homem saiu, deixando no ar um rastro de advertência amarga.

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Naquela noite, Charles refletia diante do esboço da nova praça. A imagem de Amélia voltava repetidamente em sua mente, entrelaçada agora com os dizeres de Peter Lambert. Filha ilegítima de um visconde. Isso explicava muita coisa: o orgulho, a reserva, o medo de ser “descoberta”.

Ele lembrou-se do olhar dela ao falar da escola, da praça, da Misericórdia. Aquela mulher não buscava redenção — ela era, em si, uma força que se recusava a ser apagada por convenções.

Alguém bateu à porta.

Era Amélia.

— Posso entrar?

— Sempre.

Ela entrou com passos calmos, mas hesitantes. Carregava uma caixa de madeira nas mãos.

— Trouxe isto. São os registros da escola. Antigos planos, listas, ideias… Achei que poderiam ajudar.

Charles aceitou a caixa e, ao pousá-la sobre a mesa, percebeu que o topo escondia um envelope diferente dos outros. Amélia, percebendo sua curiosidade, falou antes que ele perguntasse.

— É uma carta. Do meu pai. A única que recebi.

— Posso?

Ela assentiu.

Charles a leu em silêncio.

> “Amélia,

Meu nome nunca poderá ser seu escudo, mas espero que a verdade não pese sobre seus ombros.

Você nasceu do erro, mas não é erro algum.

Um dia, talvez, o mundo seja gentil com mulheres como você.

Até lá, seja maior do que esperam.

— E.”

Ele olhou para Amélia, que mantinha os olhos baixos.

— Eu não quero piedade, Charles. Só quero construir algo que me permita existir sem precisar me explicar.

— Não tenho piedade de você, Amélia. Tenho admiração. E… algo mais que ainda não sei nomear.

Ela ergueu os olhos.

— Então não diga nada agora. Deixe que Elmridge seja reconstruída antes que nós mesmos nos desconstruamos.

Ele sorriu, tocando de leve a lateral da caixa.

— Justo.

Ela se virou para sair, mas hesitou à porta.

— Amanhã visitaremos as casas do setor oeste. Dizem que há alicerces que resistiram ao incêndio. Gosto de pensar que as estruturas certas sempre resistem.

— Estarei pronto ao amanhecer.

E ela se foi, deixando um silêncio carregado de promessas.

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Na manhã seguinte, quando Charles chegou à área oeste da vila, encontrou Amélia já lá, com as mangas arregaçadas e os cabelos presos com um lenço claro. Junto a ela, alguns homens escavavam os escombros e expunham o que restava das fundações.

— Veja isto — disse ela, apontando para uma base de pedra. — Era a casa da senhora Mildred. Foi uma das primeiras construídas na vila, há mais de oitenta anos.

Charles se agachou e analisou os blocos.

— O material ainda está sólido. Podemos reaproveitar boa parte para a nova estrutura.

— Então ela continuará aqui, de algum modo.

Ele a olhou.

— Sim. O que é sólido permanece. Mesmo que renasça diferente.

E, pela primeira vez, Amélia não desviou o olhar.

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