Ecos do Nome Perdido
O silêncio após o ritual foi tão absoluto que doía.
Fiquei deitada por longos minutos no chão frio da biblioteca, respirando com dificuldade. O ar parecia mais leve, como se a pressão constante que pairava sobre a casa tivesse finalmente se dissipado. As paredes pararam de ranger. As sombras não se moviam mais fora do campo de visão. A boneca, agora partida em três pedaços, estava imóvel sobre o símbolo de selamento traçado em sal e sangue.
Mas algo dentro de mim ainda tremia.
Levantei devagar, sentindo dores pelo corpo. Havia sangue seco em minhas mãos, nas laterais do rosto e nos braços, provavelmente dos cortes causados pela queda no galpão. Peguei o grimório e o amuleto, guardando-os na mochila com cuidado, como se fossem artefatos sagrados. Eram minha única prova concreta de tudo que vivi — ou talvez, minha única defesa contra o que pudesse ainda estar à espreita.
Fui até a sala novamente. A parede com os quadros permanecia ali, mas algo estava diferente. As fotos estavam apagadas. Manchas borradas haviam tomado o lugar dos rostos. Inclusive o meu. Onde antes havia minha imagem em frente à casa, restava apenas uma sombra cinza, indefinida, como se minha identidade tivesse sido parcialmente... esquecida.
Um frio me percorreu a espinha.
Talvez o ritual tivesse funcionado. Talvez eu tivesse conseguido selar a entidade. Mas não havia garantias de que tudo tinha acabado. Aquela casa era uma cicatriz aberta, e cicatrizes não desaparecem — elas apenas se fecham com o tempo.
Tentei sair. Pela primeira vez desde que entrei, a porta da frente se abriu sem resistência. Lá fora, o céu estava limpo. Azul. O mundo parecia ter voltado ao normal. Nenhum redemoinho negro, nenhuma vegetação morta. Até mesmo os sons haviam retornado: o canto distante de um pássaro, o farfalhar das folhas.
Meu carro ainda estava ali, mas limpo, como se nunca tivesse sido coberto por poeira. A chave funcionou. O motor ligou na primeira tentativa. O relógio marcava 08h13 da manhã.
Mas eu sabia que havia passado pelo menos três dias ali dentro.
O tempo não fazia sentido naquele lugar.
Dirigi em silêncio até a cidade, sentindo os olhos das casas e dos moradores me acompanharem. Ao parar no posto de gasolina, a atendente me reconheceu.
— A senhora está bem? — perguntou, com olhos arregalados. — A gente achou que tinha morrido. Disseram que a casa te engoliu…
— Como assim? — perguntei, tentando manter a calma.
— Uma senhora lá da vila disse que viu seu carro subindo pra colina, mas nunca mais voltou. Já fazem uns seis dias.
Seis dias. Não três. Meu corpo gelou.
Deixei o posto rapidamente, fui até a pousada onde havia me hospedado. A recepcionista também me olhou assustada, como se visse um fantasma. Eu nem precisava perguntar. O tempo aqui passara de forma diferente. E, de alguma forma, a casa havia me mantido presa num entretempo, como se estivesse fora das regras naturais do mundo.
Tomei banho, comi, e descansei por algumas horas. Mas o sono foi inquieto.
Sonhei com ela.
A menina.
Ela estava sentada no sótão, com as pernas cruzadas e a boneca despedaçada nos braços. Seus olhos estavam vazios de novo, mas sua expressão era de tristeza, não de raiva.
— Você me deu um nome, — ela disse. — Mas os nomes não duram para sempre.
Acordei com o som de um choro infantil ecoando no quarto.
Mas eu estava sozinha.
Passei o dia tentando organizar os arquivos: fotos da casa, páginas do diário, trechos do grimório. Enviei tudo para meu e-mail pessoal, salvando cópias em três pen drives diferentes. Algo em mim dizia que eu precisava registrar aquela história antes que ela me escapasse dos dedos — ou da memória.
E então percebi outra coisa estranha.
Ao revisar as gravações de áudio do meu celular — que milagrosamente voltara a funcionar — notei que a maior parte estava corrompida. Arquivos cheios de estática, ruídos agudos, e em alguns trechos... vozes.
Em uma gravação específica, ouvia-se claramente meu nome sendo repetido em um tom melancólico, como se a própria casa estivesse lamentando minha saída.
— Clara... Clara... Clara...
Desliguei o celular, com a pele arrepiada.
À noite, voltei à biblioteca da cidade, onde consegui acesso aos registros antigos da vila. Descobri que “E.A.” era, na verdade, Elvira Andrade, uma professora que desapareceu misteriosamente em 1955, após investigar o desaparecimento de seus alunos — os mesmos que ela acreditava estarem ligados à lenda da “menina da boneca”.
Seus diários e anotações nunca haviam sido encontrados.
Até agora.
E havia mais.
Nas fichas da prefeitura, havia um registro da construção da casa da Colina Branca, datado de 1893. O proprietário original? Dr. Maurício Andrade — médico psiquiatra e, coincidentemente, irmão de Elvira.
O local fora usado como sanatório infantil por dois anos, antes de ser interditado por "condições insalubres e incidentes não esclarecidos".
O buraco era mais fundo do que eu imaginava.
A casa não era apenas mal-assombrada. Era um campo de contenção. Um local de experimentos, de dor, de abandono. Um ímã para almas feridas e esquecidas.
Talvez... ela — a entidade — fosse apenas a manifestação coletiva de todas as crianças perdidas ali. Uma centelha de dor tão profunda que tomou forma. E a boneca... uma tentativa de dar corpo a esse sofrimento. Um meio de contê-lo. Ou de expressá-lo.
Voltei à pousada em choque. Passei horas encarando a boneca quebrada que levei comigo — incapaz de descartá-la, como se parte de mim ainda estivesse ligada a ela. Seus olhos vazios agora pareciam inofensivos, mas eu sabia o que havia estado ali dentro.
E, antes de dormir, escrevi no meu caderno:
> “A casa da Colina Branca não é um lugar.
É um eco.
E todos os ecos precisam de alguém que escute.”
Naquela noite, antes de apagar as luzes, olhei pela janela e, por um breve segundo, juro que vi — no alto da colina distante — uma luz acesa no sótão.
Ela ainda estava lá.
Esperando.
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Atualizado até capítulo 41
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