capítulo 5

Ecos do Nome Perdido

O silêncio após o ritual foi tão absoluto que doía.

Fiquei deitada por longos minutos no chão frio da biblioteca, respirando com dificuldade. O ar parecia mais leve, como se a pressão constante que pairava sobre a casa tivesse finalmente se dissipado. As paredes pararam de ranger. As sombras não se moviam mais fora do campo de visão. A boneca, agora partida em três pedaços, estava imóvel sobre o símbolo de selamento traçado em sal e sangue.

Mas algo dentro de mim ainda tremia.

Levantei devagar, sentindo dores pelo corpo. Havia sangue seco em minhas mãos, nas laterais do rosto e nos braços, provavelmente dos cortes causados pela queda no galpão. Peguei o grimório e o amuleto, guardando-os na mochila com cuidado, como se fossem artefatos sagrados. Eram minha única prova concreta de tudo que vivi — ou talvez, minha única defesa contra o que pudesse ainda estar à espreita.

Fui até a sala novamente. A parede com os quadros permanecia ali, mas algo estava diferente. As fotos estavam apagadas. Manchas borradas haviam tomado o lugar dos rostos. Inclusive o meu. Onde antes havia minha imagem em frente à casa, restava apenas uma sombra cinza, indefinida, como se minha identidade tivesse sido parcialmente... esquecida.

Um frio me percorreu a espinha.

Talvez o ritual tivesse funcionado. Talvez eu tivesse conseguido selar a entidade. Mas não havia garantias de que tudo tinha acabado. Aquela casa era uma cicatriz aberta, e cicatrizes não desaparecem — elas apenas se fecham com o tempo.

Tentei sair. Pela primeira vez desde que entrei, a porta da frente se abriu sem resistência. Lá fora, o céu estava limpo. Azul. O mundo parecia ter voltado ao normal. Nenhum redemoinho negro, nenhuma vegetação morta. Até mesmo os sons haviam retornado: o canto distante de um pássaro, o farfalhar das folhas.

Meu carro ainda estava ali, mas limpo, como se nunca tivesse sido coberto por poeira. A chave funcionou. O motor ligou na primeira tentativa. O relógio marcava 08h13 da manhã.

Mas eu sabia que havia passado pelo menos três dias ali dentro.

O tempo não fazia sentido naquele lugar.

Dirigi em silêncio até a cidade, sentindo os olhos das casas e dos moradores me acompanharem. Ao parar no posto de gasolina, a atendente me reconheceu.

— A senhora está bem? — perguntou, com olhos arregalados. — A gente achou que tinha morrido. Disseram que a casa te engoliu…

— Como assim? — perguntei, tentando manter a calma.

— Uma senhora lá da vila disse que viu seu carro subindo pra colina, mas nunca mais voltou. Já fazem uns seis dias.

Seis dias. Não três. Meu corpo gelou.

Deixei o posto rapidamente, fui até a pousada onde havia me hospedado. A recepcionista também me olhou assustada, como se visse um fantasma. Eu nem precisava perguntar. O tempo aqui passara de forma diferente. E, de alguma forma, a casa havia me mantido presa num entretempo, como se estivesse fora das regras naturais do mundo.

Tomei banho, comi, e descansei por algumas horas. Mas o sono foi inquieto.

Sonhei com ela.

A menina.

Ela estava sentada no sótão, com as pernas cruzadas e a boneca despedaçada nos braços. Seus olhos estavam vazios de novo, mas sua expressão era de tristeza, não de raiva.

— Você me deu um nome, — ela disse. — Mas os nomes não duram para sempre.

Acordei com o som de um choro infantil ecoando no quarto.

Mas eu estava sozinha.

Passei o dia tentando organizar os arquivos: fotos da casa, páginas do diário, trechos do grimório. Enviei tudo para meu e-mail pessoal, salvando cópias em três pen drives diferentes. Algo em mim dizia que eu precisava registrar aquela história antes que ela me escapasse dos dedos — ou da memória.

E então percebi outra coisa estranha.

Ao revisar as gravações de áudio do meu celular — que milagrosamente voltara a funcionar — notei que a maior parte estava corrompida. Arquivos cheios de estática, ruídos agudos, e em alguns trechos... vozes.

Em uma gravação específica, ouvia-se claramente meu nome sendo repetido em um tom melancólico, como se a própria casa estivesse lamentando minha saída.

— Clara... Clara... Clara...

Desliguei o celular, com a pele arrepiada.

À noite, voltei à biblioteca da cidade, onde consegui acesso aos registros antigos da vila. Descobri que “E.A.” era, na verdade, Elvira Andrade, uma professora que desapareceu misteriosamente em 1955, após investigar o desaparecimento de seus alunos — os mesmos que ela acreditava estarem ligados à lenda da “menina da boneca”.

Seus diários e anotações nunca haviam sido encontrados.

Até agora.

E havia mais.

Nas fichas da prefeitura, havia um registro da construção da casa da Colina Branca, datado de 1893. O proprietário original? Dr. Maurício Andrade — médico psiquiatra e, coincidentemente, irmão de Elvira.

O local fora usado como sanatório infantil por dois anos, antes de ser interditado por "condições insalubres e incidentes não esclarecidos".

O buraco era mais fundo do que eu imaginava.

A casa não era apenas mal-assombrada. Era um campo de contenção. Um local de experimentos, de dor, de abandono. Um ímã para almas feridas e esquecidas.

Talvez... ela — a entidade — fosse apenas a manifestação coletiva de todas as crianças perdidas ali. Uma centelha de dor tão profunda que tomou forma. E a boneca... uma tentativa de dar corpo a esse sofrimento. Um meio de contê-lo. Ou de expressá-lo.

Voltei à pousada em choque. Passei horas encarando a boneca quebrada que levei comigo — incapaz de descartá-la, como se parte de mim ainda estivesse ligada a ela. Seus olhos vazios agora pareciam inofensivos, mas eu sabia o que havia estado ali dentro.

E, antes de dormir, escrevi no meu caderno:

> “A casa da Colina Branca não é um lugar.

É um eco.

E todos os ecos precisam de alguém que escute.”

Naquela noite, antes de apagar as luzes, olhei pela janela e, por um breve segundo, juro que vi — no alto da colina distante — uma luz acesa no sótão.

Ela ainda estava lá.

Esperando.

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