A Linguagem dos Mortos
Aquela noite parecia não ter fim.
Com a boneca nos braços e a mente à beira do colapso, me arrastei até o que restava da antiga biblioteca da casa. Era um cômodo escondido atrás de uma estante falsa no andar inferior, que eu descobrira ao esbarrar nela durante a fuga. Livros empoeirados, muitos escritos à mão, tomavam o espaço. A maioria deles estava em latim, com páginas coladas por sangue seco ou cobertas de símbolos indecifráveis.
Mas um deles, o menor e mais desgastado, parecia me chamar.
Na capa, a palavra "Veritas" estava gravada em tinta escura. Ao abri-lo, notei que ele era um diário. O autor se identificava apenas como “E.A.”, e as primeiras páginas narravam sua chegada à cidade, em 1947, para investigar o desaparecimento de cinco crianças de uma mesma rua. A descrição do caso era assustadoramente parecida com a história dos irmãos Cardoso.
À medida que lia, fui percebendo um padrão: todas as crianças desapareceram após relatos de encontros com “a menina da fita preta”. Sempre à noite. Sempre após falarem com uma boneca encontrada na floresta.
Mas havia algo mais.
E.A. mencionava um ritual. Uma tentativa desesperada de selar a entidade dentro de um “vessel” — um receptáculo. No caso, a boneca costurada com os olhos tapados. A fita preta, os selos de papel e o fio vermelho nos olhos eram parte de um encantamento rudimentar, um tipo de contenção espiritual improvisada.
O diário terminava abruptamente com a frase:
> “Ela fingiu dormir. Esperou. Aprendeu. Agora, ela observa por dentro.”
Fechei o livro com um arrepio. A boneca estava ao meu lado, imóvel. Mas eu sabia que não estava inerte. Desde que os selos se romperam, algo nela mudou. Havia um calor constante em seu corpo, como se pulsasse. E quando a luz da lanterna passava por seus olhos, havia movimento.
Decidi vasculhar a casa em busca de mais pistas sobre E.A. ou sobre o ritual. Subi até o sótão, local de onde vinham os ruídos constantes nas últimas noites. A porta estava entreaberta, com marcas de arranhões nas laterais. Respirei fundo e entrei.
O ar ali era mais denso, quase sufocante. O sótão estava cheio de objetos antigos: malas, roupas infantis, brinquedos quebrados. E no centro, um círculo feito com sal e velas já derretidas. No meio, um amuleto de madeira — com o mesmo símbolo que vi no livro de E.A.: um olho fechado com uma lágrima descendo.
Aquilo era um selo.
Dentro do círculo, havia um caderno rasgado, molhado pelo tempo. Folheei com cuidado. Era um grimório improvisado. Nele, rituais de proteção, símbolos de banimento, e várias páginas sobre a “linguagem dos mortos”.
Uma anotação me chamou a atenção:
> “Ela fala a língua esquecida. Só quem escuta com o silêncio pode compreendê-la. Escrever seu nome é abrir as portas. Dizer seu nome... é convidá-la.”
Fechei o caderno com um susto. E se eu já tivesse falado o nome dela? Será que ao ouvir os sussurros, ao repetir as frases durante as manifestações, eu já havia permitido sua entrada na minha mente?
Desci do sótão com o amuleto em mãos e o grimório sob o braço. A boneca ainda me esperava na biblioteca. Sentei no chão, formando um novo círculo de sal ao redor de mim. Coloquei o amuleto entre nós duas e comecei a copiar os símbolos de proteção ao redor, tentando replicar o que vi nas anotações.
Eu não tinha certeza do que estava fazendo. Mas, se E.A. havia tentado contê-la, talvez houvesse uma forma de refazer o selo. De prendê-la novamente. Ou pelo menos, impedi-la de me dominar completamente.
A boneca começou a tremer.
Fraco no início, como vibrações sutis. Mas logo seus olhos se moveram com violência, suas articulações estalaram. Um som agudo encheu a sala, como gritos distorcidos passando por rádios antigos. As paredes tremeram. As palavras do diário ecoavam na minha mente:
“Ela fingiu dormir. Esperou. Aprendeu.”
As velas ao meu redor se apagaram uma a uma. A luz da lanterna oscilava. E então, ela apareceu.
Não como criança.
Mas como uma sombra. Alta, esguia, contorcida. Seu rosto era um borrão negro, como se a luz recusasse se fixar nele. Mas seus olhos... eles estavam ali. Os mesmos da boneca. Observando. Penetrando.
— Você me chamou... — sussurrou a sombra.
Minha voz falhou. Mas com a pouca coragem que ainda me restava, ergui o amuleto e o segurei com força.
— Eu só quero saber quem você é.
A sombra pareceu hesitar. Por um instante, vi o contorno da menina. Chorando. Sozinha. Presa.
— Você me escutou. Ninguém mais escuta...
— Por quê? — perguntei. — O que fizeram com você?
— Eles me trancaram aqui. Me deram um corpo de pano. Cortaram meu nome. E agora... eu sou só lembrança... raiva... fome.
A boneca se contorceu e a sombra voltou a se agigantar. As paredes da biblioteca racharam.
— Mas você... você me vê. Você pode ser minha voz.
Então entendi. Ela não queria apenas me matar. Queria que eu a lembrasse. Que eu contasse sua história. Que desse forma ao que foi esquecido.
Mas a que custo?
O amuleto começou a brilhar, quente na minha mão. O grimório ao meu lado girava as páginas sozinho, até parar em um símbolo marcado com sangue. Era o mesmo da parede do quarto dos irmãos Cardoso. O selo final. A prisão.
Gritei o nome que vi desenhado ali — o nome que ela mesma havia esquecido. No instante em que a palavra deixou meus lábios, a sombra gritou de volta. Um som horrível, feito de mil vozes distorcidas.
A boneca se partiu em três.
A sombra se despedaçou em pedaços negros que se dissiparam no ar.
E tudo silenciou.
Eu estava deitada, no chão frio da biblioteca, sozinha.
Mas viva.
Pelo menos… por enquanto.
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Atualizado até capítulo 41
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