capítulo 3

Os Esquecidos da Colina

A foto com meu rosto emoldurada na parede me encarava como um aviso. Eu a observei por longos segundos, o coração disparado, tentando compreender. A imagem era nítida demais para ser forjada. Era recente. Minha roupa, meu cabelo, tudo como estava naquele momento. Mas eu nunca posara diante daquela casa. Nunca permiti ser fotografada ali.

Minha pele se arrepiou, e senti o suor gelado escorrer pela nuca. Um arrepio percorreu minha espinha ao perceber o mais importante: aquela moldura não estava ali quando entrei.

A casa estava me absorvendo.

Cambaleei para trás, com o peito apertado pela sensação sufocante de não ter mais controle da realidade. As vozes voltaram, distorcidas, como se fossem sintonizadas em diferentes frequências. Sussurros que ecoavam nomes: João... Ana... Maurício... Clara... Clara...

Meu nome.

O que antes era uma investigação estava se tornando uma luta para manter minha identidade.

Corri para a porta. A madeira rangeu, mas cedeu. Do lado de fora, o mundo ainda parecia... errado. As cores desbotadas, o céu como um véu escuro, sem estrelas ou lua. O vento soprava contra mim, como se a própria atmosfera tentasse me empurrar de volta.

Mesmo assim, avancei.

Fui até o carro. Ele estava coberto por uma fina camada de poeira — como se estivesse ali há anos. Tentei ligar o motor. Nada. O painel estava apagado. Peguei meu celular: sem sinal, sem bateria, mesmo que estivesse 100% carregado quando entrei. A casa drenava tudo — eletricidade, tempo, sanidade.

Decidi então explorar o terreno. Talvez houvesse alguma pista enterrada, algo que me conectasse à origem daquela energia. Atrás da casa, encontrei um caminho estreito entre as árvores. Segui por ele, guiada apenas pela lanterna fraca e por uma sensação estranha, quase instintiva, de que algo me esperava lá.

Após alguns minutos de caminhada, cheguei a um velho galpão de madeira, praticamente engolido pela vegetação. Suas portas estavam caídas, mas o interior estava intacto, como se fosse um santuário esquecido.

Dentro, encontrei um baú de ferro, trancado com uma corrente. Ao lado dele, havia uma prateleira com documentos antigos: certidões de nascimento, cartas rasgadas, fotos em preto e branco. Pude ver rostos de crianças — algumas reconheci dos retratos dentro da casa. Uma das cartas estava endereçada ao padre local, datada de 1954:

> “Padre Augusto, ela voltou. Sabíamos que não era só imaginação. As crianças falam com ela à noite. Ela promete amor e castigo ao mesmo tempo. A boneca é só uma casca. Ela quer corpos.”

A carta estava assinada por alguém chamado Elvira Cardoso.

Cardoso.

O mesmo sobrenome dos irmãos desaparecidos em 1993.

Então aquilo era mais antigo do que todos imaginavam. Décadas antes dos irmãos sumirem, outras crianças já haviam sido tocadas pela mesma entidade. Talvez fosse a mesma menina que vi no quarto — ou algo que tomava a forma de uma.

Voltei para o baú. Usei uma barra de ferro enferrujada para arrebentar a corrente. O estalo do metal ecoou como um trovão no silêncio da floresta. Ao abrir o baú, fui envolvida por um cheiro intenso de terra molhada e carne apodrecida. Lá dentro, encontrei ossos — pequenos demais para serem de adultos. Restos mortais, envoltos em panos com símbolos desenhados em sangue seco.

E, no fundo do baú, uma segunda boneca.

Diferente da primeira, essa não sorria. Seu rosto estava coberto por uma fita preta, seus olhos costurados com linha vermelha. Ela estava amarrada com barbantes e selos feitos de papel grosso com inscrições latinas. Era uma prisão. Um selo. Um aviso.

Na lateral do baú, alguém escreveu com carvão:

“NÃO ROMPA O FIO. NÃO OLHE NOS OLHOS.”

Antes que eu pudesse reagir, ouvi passos atrás de mim. Virei rapidamente com a lanterna e iluminei o escuro. Nada. Mas o galpão ficou gélido de repente. Os papéis na prateleira começaram a se mover, levados por um vento que vinha de dentro, e a boneca caiu para fora do baú, como empurrada.

As linhas vermelhas que selavam seus olhos começaram a se desfazer, como se alguém invisível as cortasse uma a uma.

Peguei a boneca. Ela estava quente.

Senti algo me puxar para trás, com força. Caí no chão e bati a cabeça na madeira. Por um segundo, tudo girou. Quando abri os olhos, o galpão estava diferente. Luzes fracas dançavam nas paredes, como lamparinas. Crianças andavam em silêncio ao meu redor. Seus olhos vazios, suas bocas costuradas. Todas seguravam bonecas.

Uma delas se aproximou. Estendeu a mão. E num sussurro que parecia vir de dentro do meu próprio crânio, disse:

— “Ela já sabe quem você é.”

Acordei no chão, sozinha, no escuro. A boneca ainda estava comigo. Mas agora, sem os selos. Seus olhos estavam abertos. E dentro deles, vi não só reflexos... mas movimentos.

Voltei correndo para a casa, levando a boneca. Se aquilo era a fonte da presença maligna, talvez pudesse entender como ela havia sido contida no passado.

Ao chegar na sala, notei que a foto com meu rosto agora tinha companhia. Havia outras, surgidas do nada. Cinco, talvez seis pessoas diferentes. Todas pareciam assustadas. Todas tinham olhos apagados.

Um quadro novo surgira ao lado do meu: a mesma menina do quarto, agora sorrindo. E no rodapé da moldura, escrito à mão:

“A cada geração, uma alma nova para brincar.”

Caí de joelhos, com lágrimas nos olhos, apertando a boneca contra o peito. Eu estava perto demais da origem. Mas se havia um selo, se alguém já havia conseguido conter aquilo antes, então talvez... ainda houvesse uma forma.

Não de escapar.

Mas de lutar.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!