Noah estava agachado no canto do quarto, reorganizando suas brinquedos de planetas sobre a prateleira improvisada. A júpiter que a mãe havia quebrado estava agora em um novo vaso, suas folhas murchas ainda tentando se firmar. Talvez sobrevivesse. Ele contou cade um para ver se estava no lugar
Então, a porta da frente foi arrombada.
O baque ecoou pela casa como um tiro, e Ele levou as mãos aos ouvidos instantaneamente, os dedos pressionando com força. Barulho alto. Ruído inesperado. Dor. Ele encolheu-se, balançando para frente e para trás, os músculos tensos.
— Você tá achando que dá pra sumir, é? — uma voz cortou o ar, grossa e cheia de algo que Ele não entendia, mas que seu corpo reconhecia como perigo.
Ele levantou os olhos devagar.
Na sala, três homens ocupavam o espaço como uma tempestade. Dois deles eram grandes, braços tatuados, olhos escaneando tudo com desprezo. O terceiro... era diferente. Mais baixo, mas com uma presença que fazia o ar parar. Cabelo grisalho, sobretudo preto, e um olhar que não piscava. O Sr. Costa.
A mãe dele estava encostada na parede, o rosto pálido, os dedos segurando um cigarro que já se apagara.
— Sr. Costa, eu— eu juro que vou pagar, só preciso de mais uma semana—
— Já foram três semanas. — O Sr. Costa nem levantou a voz, mas cada palavra era como uma faca. — Você acha que eu sou banco?
Um dos homens deu um passo à frente, pegando o vaso de Senecio rowleyanus (a "planta-colar-de-pérolas" que Ele cultivava há meses) e esmagando-o no chão com um sorriso torto.
— Olha, chefe, o retardado tem um jardim—
Ele não pensou. Apenas se moveu.
Antes que percebesse, estava ajoelhado no chão, tentando recolher os fragmentos verdes, as contas perfeitas de sua planta agora esmagadas como tudo naquela casa. Suas mãos tremiam. Não. Não. Não.
O homem riu e ergueu o pé, como se fosse esmagar seus dedos.
— Pára.
A voz do Sr. Costa cortou como um chicote. O homem congelou.
Ele ainda estava agachado, os braços agora envolvendo a cabeça, os ouvidos tapados. Muito barulho. Muito. Muito.
Um silêncio pesado caiu.
Então, passos. Lentos. O cheiro de couro e tabaco encheu suas narinas quando o Sr. Costa se abaixou ao seu lado, sem tocar nele.
— ...Levanta. — A voz ainda era firme, mas diferente. Sem a ferocidade de antes.
Ele levantou os olhos, mas não os olhos do homem. Fixou-se na gravata, num padrão geométrico perfeito. Linhas paralelas. Seguras.
— Você é autista. — Não era uma pergunta.
Ele não respondeu. A mãe gemia algo sobre "ele não tem nada a ver com isso", mas o Sr. Costa ignorou.
— Vem. — O homem se levantou, estendendo a mão, mas sem se aproximar demais. — Você vai comigo.
A mãe gritou.
— O QUE? Não, ele não—
— Você não tem escolha. — O Sr. Costa nem olhou para ela. — Ou ele vem, ou eu queimo essa casa com vocês dois dentro.
Ele não entendia. Não entendia o que estava acontecendo, por que aquele homem olhava para ele com algo que não era raiva, por que sua mãe agora chorava sem lágrimas. Mas quando o Sr. Costa virou as costas e caminhou para a porta, Ele seguiu.
Porque, naquele momento, qualquer lugar era melhor do que ali.
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Carro do Sr. Costa
O interior era limpo, cheiroso, sem cigarros ou álcool. Ele sentou-se no banco de trás, as mãos pousadas no colo, os olhos fixos na árvore que passava pela janela. Frevo-de-jardim. Roxo. Seis pétalas.
O Sr. Costa observava-o pelo retrovisor.
— Como você se chama?
— ... Noah
— Noah — O homem repetiu, como se testando. — Você gosta de planetas Noah
Ele olhou para as mãos, onde ainda havia terra das raízes destruídas.
— ...Sim.
O Sr. Costa acenou com a cabeça, como se aquela única palavra fosse suficiente.
O carro parou em frente a uma casa grande, de paredes de pedra e jardins impecáveis. Noah — Ele, seu nome era Noah, mas ninguém usava há anos — contou mentalmente os degraus da escada frontal. Doze. Simétricos.
O Sr. Costa abriu a porta sem tocar nele, mantendo uma distância cuidadosa, como se soubesse que aquele garoto precisava de espaço para respirar.
— Entra.
Noah pisou no hall de entrada, seus tênis surrados contrastando com o mármore polido. O cheiro era diferente aqui. Limão. Canela. Nada de cigarro.
— Você deve estar se perguntando por que está aqui. — O Sr. Costa tirou o sobretudo, pendurando-o em um cabide perfeito. — Sua mãe me deve muito dinheiro. Dinheiro que ela não tem.
Noah apertou os dedos, sentindo as articulações rangendo. Contar. Precisava contar algo.
— ...Eu tenho faculdade hoje. — A voz saiu mais baixa do que ele queria.
O Sr. Costa parou. Virou-se devagar.
— Faculdade?
— Agronomia. — Noah olhou para o chão, traçando as veias do mármore com os olhos. Mapas. Eram como mapas. — Tenho aula às 14h. Não quero faltar.
Silêncio.
Noah esperou o tiro. O grito. A mão batendo nele por ousar pedir algo.
Mas o que veio foi um suspiro.
— Porra, garoto. — O Sr. Costa esfregou o rosto. — Você me faz sentir velho.
E então, algo inesperado:
— Vamos ver seu quarto primeiro. Depois eu te levo pra essa porra de faculdade.
Segundo andar. Corredor à direita. Terceira porta.
O Sr. Costa abriu.
— Aqui.
Noah parou na entrada.
Era... normal. Demais. Uma cama. Uma escrivaninha. Uma estante vazia. Nada que gritasse, nada que doía nos olhos. Seguro.
Mas então ele viu.
A janela.
Grande, voltada para o céu, com um pequeno parapeito onde caberiam — caberiam perfeitamente — vasos.
— Você gosta de planetas, né? — O Sr. Costa apontou para a estante. — Dá pra botar uns livros aí. Ou... sei lá, miniaturas de Saturno.
Noah olhou para ele, confuso. Como ele sabia?
— ...Eu vi seu caderno no carro. — O homem encostou na porta, os ombros menos rígidos agora. — Tá cheio de desenhos de constelações. E você ficou olhando pra Lua o caminho todo.
Noah não sabia o que dizer. Então, disse a verdade.
— ...Obrigado.
O Sr. Costa riu, um som rouco que não era nem um pouco engraçado.
— Não me agradeça ainda, garoto. — Ele virou para sair, parando na porta. — Você não vai voltar pra casa da sua mãe. Mas... pode ficar aqui. Estudar. Cuidar das suas porra de plantas.
— ...E ela?
O silêncio foi a única resposta.
Noah entendeu.
O carro preto estacionou em frente ao campus. Noah segurava a mochila com força, os livros pesando como pedras.
— Aula termina às 18h. Tô te buscando. — O Sr. Costa acendeu um cigarro, mas jogou a primeira baforada para fora da janela. Como se soubesse que Noah odiava o cheiro.
Noah assentiu.
— ...Você não vai me matar? — A pergunta saiu antes que ele pudesse pará-la.
O Sr. Costa olhou para ele. Real olhou.
— Não hoje.
E, por algum motivo, Noah acreditou nele.
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