Dois dias depois, Gabriel voltou ao hospital.
Mesmo horário. Mesmo café ruim. Mesmo jaleco bem passado.
Mas alguma coisa em sua postura havia mudado. Não nos gestos — ainda gentis, ainda profissionais. Mas no olhar. Um cansaço escuro espreitava por trás das pálpebras. Como se ele tivesse parado de esperar alguma coisa. Como se tivesse aprendido a se desligar sem pedir permissão.
— Tudo bem, doutor? — perguntou Paula, entregando-lhe uma prancheta.
— Tudo sim — mentiu, como sempre.
Subiu para o segundo andar. Passou pelos corredores. Viu Miguel de longe, analisando exames com os residentes mais novos.
Não parou.
Não tentou puxar conversa.
Não sorriu.
Pela primeira vez, Gabriel apenas… passou.
---
Miguel notou.
Notou o silêncio.
A falta daquele “bom dia” murmurando atrás dele.
A ausência daquele olhar que sempre o seguiu sem cobrar nada.
Ficou olhando Gabriel se afastar.
E sentiu…
Um incômodo estranho. Como se o ar tivesse esfriado de repente.
— Doutor? — chamou uma residente, sem resposta.
— Hã?
— O senhor tá bem?
Miguel desviou os olhos e resmungou:
— Tô. Continua o caso.
---
Na sala dos médicos, Gabriel sentou para almoçar. O prato à frente, mas sem fome. Cutucava o feijão com o garfo, em silêncio.
Ao lado, Paula observava.
— Você voltou, mas ainda não tá aqui, né?
Ele deu de ombros.
— O mundo não para.
— Mas você pode parar.
— Não posso. Se parar, desabo.
Ela segurou sua mão de leve, discretamente.
— Se um dia quiser falar... ou só sentar do meu lado e chorar... tô aqui.
Gabriel sorriu fraco.
— Obrigado. Mas não posso me dar ao luxo de sentir.
— Pode sim. Só não quer.
---
No fim do expediente, Miguel o encontrou por acaso na sala de exames. Gabriel revisava um laudo sozinho, absorto, os olhos vermelhos de quem não dormia direito há dias.
— Gabriel.
Ele ergueu o olhar, sem expectativa.
— Doutor.
— Soube que você faltou. Tudo certo?
Gabriel hesitou um segundo. Depois assentiu.
— Sim. Era só cansaço.
Miguel apertou os lábios. Quase disse algo. Mas não disse.
Apenas continuou:
— Seu rendimento não caiu, mas… você tá diferente.
— Não, doutor. Só mais focado.
— Sei.
O silêncio entre eles se estendeu.
Então, por impulso, Miguel perguntou:
— Algum problema pessoal?
Gabriel o encarou. Havia tanta coisa que poderia dizer. Tanta dor.
Mas escolheu o caminho de sempre:
— Nada que importe.
Miguel não soube o que responder. Apenas assentiu e saiu.
Mas, ao virar o corredor, parou. Encostou-se na parede por alguns segundos. Pensou em Gabriel.
E pela primeira vez em muito tempo… sentiu um peso no peito que não conseguia explicar.
---
Naquela noite, Gabriel chegou em casa e foi direto para o banho.
Ficou sob a água quente até o corpo doer.
Fechou os olhos.
E desejou não sentir tanto.
Mas sabia que no dia seguinte… voltaria ao hospital com o mesmo sorriso falso.
Porque ser médico não permitia falhar.
E ser ele… nunca permitiu ser fraco.
Mas, pela primeira vez… alguém tinha percebido.
E isso o assustava.
O sábado amanheceu nublado, como se o céu adivinhasse o que estava por vir.
Gabriel estava em casa, tentando descansar, deitado no sofá com o cobertor até o peito e um livro aberto que ele não lia de verdade. O silêncio era tudo o que ele queria.
Até ouvir a campainha.
Três toques rápidos. Depois, mais dois. Um padrão antigo que ele conhecia bem.
Sentou devagar. Um arrepio cruzou sua espinha.
Quando abriu a porta, o mundo girou um pouco.
— Mãe. Pai.
A mãe sorriu daquele jeito que mais parecia um pedido disfarçado.
— Achamos que seria bom passar pra ver como você está. Não atendia mais nossas mensagens no grupo.
— Vocês nunca mandaram nada direto pra mim.
O pai ajeitou a gola do casaco, como se quisesse não estar ali.
— Podemos entrar?
Gabriel abriu espaço, ainda sem saber por quê.
---
A sala ficou menor com a presença deles.
A mãe olhava em volta como se procurasse algo fora do lugar. O pai sentou como quem esperava notícias desagradáveis.
— Você tá tão magro — disse ela.
— Trabalhando muito, como sempre.
— E… tem saído? Visto alguém?
Gabriel segurou a respiração.
— O que vocês querem de verdade?
A mãe tentou parecer serena.
— Queremos entender por que você se afastou. Você quase não aparece mais nos encontros, não fala com sua irmã…
— Porque toda vez que eu vou, eu ouço piadas. Olhares atravessados. Silêncios.
— Isso é coisa da sua cabeça — disse o pai, direto.
Gabriel sentiu a garganta fechar.
— Não é. Eu só não sou o que vocês queriam. E vocês não sabem o que fazer com isso.
— Você escolheu esse caminho — disse a mãe, com tristeza performada.
— Eu escolhi ser honesto. Não queria viver mentindo pra vocês. Mas parece que quando eu contei, deixei de ser filho pra virar um constrangimento.
A mãe baixou os olhos. O pai cruzou os braços.
— Isso não é fácil pra nós também — ele disse. — A gente foi criado de outro jeito.
— Pois eu tô cansado de ser educado com quem não me vê. Cansado de sorrir quando tudo o que eu queria era um abraço. Um “eu te amo” que não viesse com condição.
A mãe tentou tocar seu braço. Ele recuou.
— Vocês vieram aqui hoje por culpa. Não por amor.
Silêncio.
— Podem ficar o tempo que quiserem. Mas eu não vou mais me calar pra ser aceito.
Eles não disseram mais nada.
Só ficaram ali. Como móveis fora do lugar.
---
Enquanto isso, no hospital, Miguel passava os olhos por um prontuário quando ouviu Paula comentar:
— Gabriel tá de folga de novo?
— Pediu o fim de semana. Família apareceu.
Miguel fechou o prontuário devagar.
— Família?
— Os pais, acho. Não costumam visitar, né?
Miguel ficou em silêncio. Por alguma razão, isso o incomodou.
Mais do que deveria.
---
Naquela noite, os pais de Gabriel foram embora cedo.
Sem abraços.
Sem promessas.
Gabriel os acompanhou até a porta, segurando a raiva e a tristeza como se fossem febre.
Quando fechou a porta atrás deles, respirou fundo.
O peito doía.
Mas, pela primeira vez em muito tempo…
Ele não pediu desculpa por existir.
E, mesmo sangrando por dentro, isso era alguma forma de vitória.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 31
Comments