capítulo 3

Dois dias depois, Gabriel voltou ao hospital.

Mesmo horário. Mesmo café ruim. Mesmo jaleco bem passado.

Mas alguma coisa em sua postura havia mudado. Não nos gestos — ainda gentis, ainda profissionais. Mas no olhar. Um cansaço escuro espreitava por trás das pálpebras. Como se ele tivesse parado de esperar alguma coisa. Como se tivesse aprendido a se desligar sem pedir permissão.

— Tudo bem, doutor? — perguntou Paula, entregando-lhe uma prancheta.

— Tudo sim — mentiu, como sempre.

Subiu para o segundo andar. Passou pelos corredores. Viu Miguel de longe, analisando exames com os residentes mais novos.

Não parou.

Não tentou puxar conversa.

Não sorriu.

Pela primeira vez, Gabriel apenas… passou.

---

Miguel notou.

Notou o silêncio.

A falta daquele “bom dia” murmurando atrás dele.

A ausência daquele olhar que sempre o seguiu sem cobrar nada.

Ficou olhando Gabriel se afastar.

E sentiu…

Um incômodo estranho. Como se o ar tivesse esfriado de repente.

— Doutor? — chamou uma residente, sem resposta.

— Hã?

— O senhor tá bem?

Miguel desviou os olhos e resmungou:

— Tô. Continua o caso.

---

Na sala dos médicos, Gabriel sentou para almoçar. O prato à frente, mas sem fome. Cutucava o feijão com o garfo, em silêncio.

Ao lado, Paula observava.

— Você voltou, mas ainda não tá aqui, né?

Ele deu de ombros.

— O mundo não para.

— Mas você pode parar.

— Não posso. Se parar, desabo.

Ela segurou sua mão de leve, discretamente.

— Se um dia quiser falar... ou só sentar do meu lado e chorar... tô aqui.

Gabriel sorriu fraco.

— Obrigado. Mas não posso me dar ao luxo de sentir.

— Pode sim. Só não quer.

---

No fim do expediente, Miguel o encontrou por acaso na sala de exames. Gabriel revisava um laudo sozinho, absorto, os olhos vermelhos de quem não dormia direito há dias.

— Gabriel.

Ele ergueu o olhar, sem expectativa.

— Doutor.

— Soube que você faltou. Tudo certo?

Gabriel hesitou um segundo. Depois assentiu.

— Sim. Era só cansaço.

Miguel apertou os lábios. Quase disse algo. Mas não disse.

Apenas continuou:

— Seu rendimento não caiu, mas… você tá diferente.

— Não, doutor. Só mais focado.

— Sei.

O silêncio entre eles se estendeu.

Então, por impulso, Miguel perguntou:

— Algum problema pessoal?

Gabriel o encarou. Havia tanta coisa que poderia dizer. Tanta dor.

Mas escolheu o caminho de sempre:

— Nada que importe.

Miguel não soube o que responder. Apenas assentiu e saiu.

Mas, ao virar o corredor, parou. Encostou-se na parede por alguns segundos. Pensou em Gabriel.

E pela primeira vez em muito tempo… sentiu um peso no peito que não conseguia explicar.

---

Naquela noite, Gabriel chegou em casa e foi direto para o banho.

Ficou sob a água quente até o corpo doer.

Fechou os olhos.

E desejou não sentir tanto.

Mas sabia que no dia seguinte… voltaria ao hospital com o mesmo sorriso falso.

Porque ser médico não permitia falhar.

E ser ele… nunca permitiu ser fraco.

Mas, pela primeira vez… alguém tinha percebido.

E isso o assustava.

O sábado amanheceu nublado, como se o céu adivinhasse o que estava por vir.

Gabriel estava em casa, tentando descansar, deitado no sofá com o cobertor até o peito e um livro aberto que ele não lia de verdade. O silêncio era tudo o que ele queria.

Até ouvir a campainha.

Três toques rápidos. Depois, mais dois. Um padrão antigo que ele conhecia bem.

Sentou devagar. Um arrepio cruzou sua espinha.

Quando abriu a porta, o mundo girou um pouco.

— Mãe. Pai.

A mãe sorriu daquele jeito que mais parecia um pedido disfarçado.

— Achamos que seria bom passar pra ver como você está. Não atendia mais nossas mensagens no grupo.

— Vocês nunca mandaram nada direto pra mim.

O pai ajeitou a gola do casaco, como se quisesse não estar ali.

— Podemos entrar?

Gabriel abriu espaço, ainda sem saber por quê.

---

A sala ficou menor com a presença deles.

A mãe olhava em volta como se procurasse algo fora do lugar. O pai sentou como quem esperava notícias desagradáveis.

— Você tá tão magro — disse ela.

— Trabalhando muito, como sempre.

— E… tem saído? Visto alguém?

Gabriel segurou a respiração.

— O que vocês querem de verdade?

A mãe tentou parecer serena.

— Queremos entender por que você se afastou. Você quase não aparece mais nos encontros, não fala com sua irmã…

— Porque toda vez que eu vou, eu ouço piadas. Olhares atravessados. Silêncios.

— Isso é coisa da sua cabeça — disse o pai, direto.

Gabriel sentiu a garganta fechar.

— Não é. Eu só não sou o que vocês queriam. E vocês não sabem o que fazer com isso.

— Você escolheu esse caminho — disse a mãe, com tristeza performada.

— Eu escolhi ser honesto. Não queria viver mentindo pra vocês. Mas parece que quando eu contei, deixei de ser filho pra virar um constrangimento.

A mãe baixou os olhos. O pai cruzou os braços.

— Isso não é fácil pra nós também — ele disse. — A gente foi criado de outro jeito.

— Pois eu tô cansado de ser educado com quem não me vê. Cansado de sorrir quando tudo o que eu queria era um abraço. Um “eu te amo” que não viesse com condição.

A mãe tentou tocar seu braço. Ele recuou.

— Vocês vieram aqui hoje por culpa. Não por amor.

Silêncio.

— Podem ficar o tempo que quiserem. Mas eu não vou mais me calar pra ser aceito.

Eles não disseram mais nada.

Só ficaram ali. Como móveis fora do lugar.

---

Enquanto isso, no hospital, Miguel passava os olhos por um prontuário quando ouviu Paula comentar:

— Gabriel tá de folga de novo?

— Pediu o fim de semana. Família apareceu.

Miguel fechou o prontuário devagar.

— Família?

— Os pais, acho. Não costumam visitar, né?

Miguel ficou em silêncio. Por alguma razão, isso o incomodou.

Mais do que deveria.

---

Naquela noite, os pais de Gabriel foram embora cedo.

Sem abraços.

Sem promessas.

Gabriel os acompanhou até a porta, segurando a raiva e a tristeza como se fossem febre.

Quando fechou a porta atrás deles, respirou fundo.

O peito doía.

Mas, pela primeira vez em muito tempo…

Ele não pediu desculpa por existir.

E, mesmo sangrando por dentro, isso era alguma forma de vitória.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!