A primeira vez que Gabriel deixou de comer, ninguém notou.
Foi durante o almoço no refeitório do hospital. O prato cheio, a colher parada. Na frente dele, os colegas conversavam sobre um caso grave da manhã — mas ele só conseguia olhar para a cadeira vazia no canto da sala.
Era onde Miguel sempre sentava.
Mas naquele dia, Miguel nem apareceu.
Gabriel empurrou o arroz com o garfo e fingiu um sorriso quando a enfermeira Paula perguntou se estava tudo bem.
— Só cansado, como sempre.
Mentira número um.
Mas quem quer saber da verdade de um médico, quando se espera que ele esteja sempre forte?
---
À noite, chegou em casa e se jogou no sofá sem tirar o jaleco.
Luz apagada. Televisão desligada.
Olhou para o teto por longos minutos. Não pensava em nada.
Ou talvez pensasse demais.
Levantar-se parecia exigir um tipo de força que ele não tinha mais.
E o pior… ninguém ligaria se ele não aparecesse no grupo da família.
Ninguém, exceto André.
O telefone vibrou.
> ANDRÉ: “Tá tudo certo por aí?”
GABRIEL: “Sim, só cansado.”
ANDRÉ: “Você fala isso há meses.”
GABRIEL: “É a vida de plantão.”
ANDRÉ: “Amanhã vou aí. Sem discussão.”
Gabriel sorriu, pela primeira vez naquele dia.
Só com o canto da boca.
---
André chegou no fim da tarde, com duas sacolas: comida, cobertor novo e um daqueles bolos que a mãe costumava fazer — antes de fingir que Gabriel não existia.
— Você emagreceu — foi a primeira coisa que disse.
— Plantão puxado.
André o encarou em silêncio.
— Senta aqui — disse, apontando para o sofá. — Agora fala.
— Falar o quê?
— Você tá triste, Gabriel. Mas não é só cansaço. Eu te conheço desde que você tinha cinco anos e dormia abraçado no meu braço. Você nunca soube fingir.
Gabriel tentou rir. Fracassou.
— Eu só… tô tentando.
— Tentando o quê?
— Ser o suficiente.
No hospital. Pra mim mesmo. Pra uma família que só me menciona quando é pra perguntar por que eu ainda tô sozinho. Ou quando querem que eu finja que não amo quem amo.
André ficou quieto. Depois disse:
— E quem você ama?
Gabriel hesitou. Então disse:
— Um colega. Miguel.
André respirou fundo.
— Ele sabe?
— Não. Acho que não. Mas mesmo que soubesse… ele não olha pra mim assim.
André assentiu.
— E você tá vivendo esse amor sozinho há quanto tempo?
— Três anos.
— E sentindo que não tem ninguém com você, né?
— Só você.
André se aproximou, passou o braço pelos ombros do irmão.
— Eu não vou te soltar. Mesmo quando o mundo todo virar as costas.
Gabriel, pela primeira vez em muito tempo, chorou.
Não com desespero. Mas com exaustão.
E André ficou ali, calado. Sem dar conselhos. Sem interromper.
Apenas ficou.
---
Na manhã seguinte, Gabriel não quis levantar.
O corpo pesado, como se tivesse areia nos ossos.
Ligou no hospital e pediu folga. Foi a primeira vez em três anos que fez isso.
Não porque queria descansar.
Mas porque não conseguia fingir.
André já estava de pé, fazendo café.
— Hoje você descansa. E amanhã também, se for preciso.
Gabriel sentou à mesa. O cheiro do café o fazia lembrar de dias bons — aqueles que não voltam mais.
— Será que um dia… eu vou ser suficiente pra alguém?
André olhou nos olhos dele.
— Você já é. A questão é: alguém vai ter coragem de te enxergar?
---
Naquela noite, Miguel chegou no hospital, atrasado.
Comentaram que Gabriel não aparecera.
E ele, pela primeira vez, parou.
Ficou alguns segundos olhando a cadeira vazia onde Gabriel sempre se sentava.
E, por um instante… pareceu incomodado.
Mas logo voltou ao trabalho.
Frio. Rígido.
Como sempre.
Ou quase.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 31
Comments
Janetf Ferreira
fiquei chocada como uma obra com essa escrita maravilhosa não tem nenhum comentário!
2025-07-19
1