A manhã começou com o cheiro de chuva no ar. As nuvens pesadas se acumulavam sobre as montanhas, e um vento frio passava por entre as frestas da janela do quarto de Clara. Apesar do clima fechado, ela acordou decidida. A carta escondida atrás do altar e o bilhete anônimo haviam plantado nela uma inquietação impossível de ignorar.
Logo após o café, Clara seguiu para a capela. Levava consigo uma lanterna e luvas de tecido fino. Precisava examinar melhor a parte de trás do altar — algo ali ainda parecia encoberto.
Com a porta trancada por dentro, acendeu a lanterna e se ajoelhou diante da base da madeira principal. O chão de pedra úmido deixava o ambiente frio, mas ela mal notava. Seus dedos seguiram as marcas irregulares, até que encontrou uma parte do painel que rangia levemente quando pressionada.
Fez força com cuidado. Um compartimento oculto, estreito, se abriu lentamente. Dentro dele, havia um pequeno envoltório de tecido velho, já tomado pelo mofo do tempo. Com mãos trêmulas, Clara o desdobrou — e ali estava uma pequena escultura de madeira escurecida, quase irreconhecível, representando um santo.
Mas o rosto da imagem havia sido raspado.
A peça parecia ter sido escondida às pressas. Era diferente de todas as outras da capela — mais rústica, mais intensa, como se tivesse vindo de outra época... ou carregasse outro significado.
Antes que pudesse examinar melhor, a porta rangeu. Clara se sobressaltou. Era Miguel.
— A porta estava encostada — disse ele, entrando, com o mesmo tom grave de sempre.
Clara guardou rapidamente a escultura no estojo. Miguel percebeu, mas não perguntou nada. Em vez disso, olhou diretamente para ela, como se soubesse que ela havia descoberto algo importante.
— Quanto mais se mexe nas coisas daqui, mais elas reagem — comentou ele, andando devagar entre os bancos.
— Você sabe o que é isso, não sabe? — Clara perguntou, com firmeza, encarando-o.
Miguel a olhou por um tempo, como se lutasse contra as próprias palavras. Mas, no fim, respondeu apenas:
— Isso aí... melhor queimar do que revelar.
E saiu.
Clara sentiu a raiva subir. Estava cansada de meias palavras, de alertas vazios, de mistérios jogados ao vento. Voltou à pousada decidida a investigar por conta própria. Na sala de estar, Dona Alzira costurava em silêncio.
— Dona Alzira, posso te fazer uma pergunta... meio delicada?
— Pode, sim, filha. Mas já aviso: resposta delicada também dói.
— O que significa uma imagem de santo com o rosto raspado?
Alzira parou o bordado. Suspirou fundo, olhou pela janela, como se procurasse coragem nas folhas do ipê.
— Significa que alguém quis apagar sua identidade. Não destruir... mas esconder. Isso se fazia quando se queria proteger ou condenar. Depende da história.
Clara apertou o pano do estojo nas mãos.
— E se essa imagem estivesse escondida dentro da capela?
Dona Alzira não respondeu de imediato. Apenas disse, quase num sussurro:
— Tem gente nessa vila que ainda treme só de ouvir falar do que aconteceu ali... há mais de vinte anos.
E então, voltou ao bordado.
À noite, Clara abriu novamente seu caderno. Desenhou a imagem encontrada, tentando recriar mentalmente os traços que haviam sido raspados. No canto da folha, escreveu:
"Apagar é um jeito de esconder, mas não de apagar o que foi vivido."
Ela sabia que estava mexendo num passado profundo, talvez doloroso demais para muitos. Mas algo dentro dela dizia que, ao descobrir aquela história, talvez também encontrasse sua própria cura.
Lá fora, a chuva finalmente começou a cair. E com ela, Clara teve a sensação de que o que estava por vir seria muito maior do que ela imaginava.
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Atualizado até capítulo 30
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