O sol ainda subia timidamente por entre as montanhas quando Clara acordou com o canto dos pássaros. A luz suave que atravessava a cortina branca do quarto dava ao ambiente um ar de paz, mas ela ainda sentia o peito apertado, como se o passado estivesse deitado ao lado dela, silencioso, mas presente.
Ela vestiu sua roupa de trabalho — jeans confortáveis, camiseta branca e um lenço preso no cabelo — e desceu para o café da manhã. Dona Alzira a esperava com pão de queijo quentinho, bolo de fubá e um bule de café forte, feito no coador de pano.
— Dormiu bem, minha filha? — perguntou com a voz sempre doce.
— Dormi... o suficiente — respondeu Clara, sem entrar em detalhes.
Dona Alzira respeitou o silêncio. Era sábia o bastante para saber que certas dores não se apressam em ir embora. Apenas ofereceu mais um pedaço de bolo e um sorriso silencioso.
Mais tarde, Clara seguiu sozinha para a capela, levando seu estojo de pincéis e solventes. Ao empurrar a porta de madeira, sentiu novamente aquele cheiro antigo de madeira, incenso e umidade. A imagem no altar a atraía como se quisesse dizer algo que faltava ser descoberto.
Ao se aproximar, notou algo estranho atrás de uma camada escura de verniz. Uma sombra pintada, quase invisível, escondia um símbolo que ela não conseguia identificar. Tocou com cuidado a superfície e sentiu uma rachadura fina por trás da madeira. Era como se algo tivesse sido encoberto propositalmente.
Enquanto analisava a peça, escutou passos atrás de si. Era Miguel, com a camisa suada e uma caixa de ferramentas na mão. Ele não falou nada. Apenas passou por ela, ajeitou algumas coisas no canto da capela e começou a consertar o suporte de uma das janelas.
Clara respirou fundo, tentando quebrar o gelo.
— Essa pintura aqui... parece ter sido alterada em algum momento. É comum, mas sempre me intriga. Quem altera uma arte sacra, geralmente, tem um bom motivo.
Miguel continuou trabalhando, como se não tivesse ouvido. Mas depois de alguns minutos, falou sem olhar pra ela:
— Nem tudo que é sagrado está limpo.
A resposta pegou Clara de surpresa. Ela parou o que estava fazendo e encarou o perfil dele. A expressão era neutra, mas o tom de voz carregava um peso.
— E o que isso quer dizer? — perguntou.
Miguel deu de ombros.
— Só estou dizendo que, às vezes, o que a gente acha que é luz... também pode ter sombras.
Ele então saiu, deixando Clara sozinha na capela com suas dúvidas. As palavras dele ecoaram por um tempo dentro dela. Havia algo estranho naquele homem. Algo que despertava tanto desconfiança quanto curiosidade.
Mais tarde, ao voltar para a pousada, Clara encontrou uma carta em cima da cama. O envelope era simples, sem remetente. Dentro, apenas um pequeno bilhete, com letras miúdas e traços trêmulos:
“Alguns segredos não foram feitos para serem descobertos.”
O coração de Clara acelerou. Aquilo não era uma coincidência. Mal havia chegado à vila e já sentia que estava sendo observada.
Guardou o bilhete na gaveta e olhou para o caderno de esboços. Lá estava o rosto de Miguel, desenhado na noite anterior. Era como se tudo ao seu redor — o homem calado, a imagem antiga, a vila silenciosa — estivesse ligado por um fio invisível.
Clara deitou-se, mas demorou a pegar no sono. Tinha vindo em busca de paz, mas sentia que, naquela vila aparentemente tranquila, havia feridas abertas que nunca foram tratadas. E talvez o caminho que a havia trazido ali não fosse de fuga, mas de reencontro com verdades que ela nem imaginava.
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Atualizado até capítulo 30
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