A pegando.

Ela entrou na sala como quem comanda o campo de guerra.

A garota que cresceu em silêncio, trancada, sem rosto no mundo, agora caminhava como se o universo devesse se curvar.

Vestido claro. Cabelo solto. Olhar felino.

Linda? Muito.

Mas não era isso que prendia.

Era a ameaça.

A forma como mantinha a coluna ereta, o queixo firme. O veneno nos olhos.

Era como observar uma arma carregada sendo colocada à mesa… sem saber quando ou por quem seria disparada.

Sorrentino me deu uma princesa.

Mas o que caminhava ali… era uma tempestade.

Ela cruzou a sala sem olhar para mim. Não pediu licença. Não disse "boa noite".

Olhei para Carlo, para Sorrentino. Eles assistiam à cena com o mesmo cuidado que se observa um tigre num recinto aberto.

Quando ela correu depois de ouvir a palavra casamento, o ar até ficou mais leve.

— Ela vai fugir. — comentei, quase em tom de prazer.

— Ela só vai até o jardim. — disse Sorrentino, franzindo o cenho. — Sempre vai para lá quando quer respirar.

Assenti, mas fiquei de pé.

— Fechamos em um mês? — perguntou Carlo, olhando para mim.

— Fechamos. — respondi, sem desviar os olhos da porta.

Foi nesse momento que a tranquilidade morreu.

— Senhor Sorrentino! — Um dos soldados entrou correndo, pálido, suado. — A garota… pulou o muro. Fugiu.

A sala congelou.

June levou a mão à boca, os olhos arregalados.

— E se algum inimigo… se alguém a reconhece—

— Ninguém vai. — interrompeu Sorrentino com a voz fria. — Ela viveu trancada. O mundo não conhece Mirella. Mas… ela se conhece. E isso é pior. Porque… — Ele se levantou devagar, foi até o bar e virou um copo. — Minha filha é a própria inimiga dela. Sempre foi.

Caminhou até a estante e puxou um painel de madeira escondido. Atrás dele, um pequeno computador.

Ligou.

Digitou a senha.

Um mapa apareceu.

Um ponto vermelho piscava num bairro afastado.

A pulsação do localizador vibrava em tempo real.

Olhei para ele. Só uma vez.

— Rastreador. — ele disse, sem me encarar. — No pulso. Colocaram no convento, e nunca tiraram. Nem ela sabe.

— E se… — balbuciou Carlo, incomodado. — Se ela dormir com alguém…? Aí acredito que não teremos mais casamento Sorrentino.

Eu respirei fundo.

Depois ri. Breve. Escuro.

— Ela não é louca, Sorrentino? — perguntei, alto demais.

Ele me olhou. Olhos de pai partido.

— Não, Eduardo. Louca, não. — disse baixo. — Mas… capaz disso? Sim.

Capaz de dançar com outro homem só para ferir.

Capaz de se entregar só para provar que manda em si mesma.

Capaz de queimar o próprio destino se isso for desafiar você.

Apertei a mandíbula. Peguei o paletó, joguei sobre o ombro.

— Vou buscá-la.

— Vai sozinho? — perguntou Carlo.

— É uma caçada. — respondi. — E o predador… precisa olhar nos olhos da presa.

Saí da casa com o coração frio, mas os pensamentos em brasa.

Ela queria me testar?

Queria me ferir?

Queria fugir?

Pois que fuja.

Mas que saiba…

Sou eu quem a encontra.

E a partir dessa noite… não existe mais saída.

No lugar a música era uma ofensa aos ouvidos.

Baixo pulsando como um coração prestes a infartar.

Cheiro de álcool, suor e hormônios misturados em um só vapor de decadência.

Entrei como uma sombra.

Frio. Focado. Letal.

Os olhares me seguiram. Sempre seguem.

Mulheres me observando como uma promessa proibida.

Homens desviando como quem já sentiu o gosto de ter os ossos quebrados.

Mas eu não vim para eles.

Vim por ela.

E ali estava.

No fundo da pista, girando sob as luzes como uma criatura selvagem em um aquário sujo.

Mirella.

O cabelo claro desfeito.

O vestido colado ao corpo como um convite indecente.

Sorria… ou tentava.

O olhar perdido… mas não o suficiente.

Ela sabia. Sabia o que fazia. E mesmo assim continuava.

Nos braços de um idiota qualquer.

Intacta? Talvez.

Mas o simples fato de estar ali, exposta, sem medo, sem proteção… me fez ver vermelho.

— Sai da frente. — falei baixo. Muito baixo. Mas o tom bastava.

Um empurrão. Um olhar. O aviso silencioso:

“Ela é minha.”

Cheguei até ela.

O homem — um inútil com sorriso de bêbado corajoso — segurava Mirella como se tivesse algum direito.

— Tira a mão. — rosnei.

— Tá maluco, cara? — ele rebateu.

Meu punho respondeu por mim.

Rápido. Cirúrgico.

A mandíbula dele estalou antes do som da música parar.

Outros dois vieram. Não sei por quê.

Idiotas.

O primeiro caiu com um chute no estômago.

O segundo ainda tentou me agarrar, dei-lhe um soco cruzado que o deixou zonzo como a música que tocava.

O terceiro, mais lento, foi jogado sobre a mesa com o impacto de quem nasceu no lugar errado, na hora errada.

Mirella ria.

Ela ria.

Grotescamente linda. Louca. Perigosa.

A deixei sentada num canto. Olhos semiabertos.

Tonta, mas viva.

Depois, continuei.

Só parei quando percebi que ela já não sorria mais.

Quando vi, nos olhos dela, o medo.

Levei-a para fora.

Ela não resistiu como antes. Só murmurava.

— Solta... Você não manda em mim...

Silêncio. O meu. Porque se eu respondesse, não sobraria nada dentro daquele carro.

Dirigi com a mandíbula cerrada, os nós dos dedos ainda vermelhos.

— Meu pai nem veio… — ela balbuciou, com a testa encostada no vidro. — Só mandou você. Um estranho. Um executor. Um cão de terno...

Explodi.

— CALA A BOCA, MIRELLA! — gritei. E o carro tremeu comigo.

Ela me olhou. Assustada. Mas firme. Sempre firme.

Mesmo machucada. Mesmo drogada. Mesmo bêbada de raiva.

— Ia se entregar para alguém só para me provocar? — cuspi. — Ia dormir com qualquer um?

— IA! — ela gritou de volta. — Para acabar com isso! Você não me conhece! NÃO SABE NADA DE MIM!

Parei o carro.

Desci.

Fui até o lado dela. Abri a porta com violência. A segurei pelo braço.

— Você se deu mal, princesa. — sussurrei. A raiva queimava por trás da calma. — Agora vai ser do meu jeito. Do pior jeito.

— QUERO FALAR COM MEU PAI! — ela berrou.

— Não vai.

— POR QUÊ?!

Ela gritava.

Debatendo-se no banco do carro como uma tempestade presa numa caixa de vidro.

— Você é um idiota arrogante, um psicopata de paletó, um cão de luxo com uma coleira dourada! Você acha que manda no mundo?! — ela cuspia cada palavra com nojo, com raiva, com tudo que me fez querer arrastá-la dali antes que ela se perdesse.

O som da música alta da boate ainda ecoava nos meus ouvidos, junto com os gritos dos homens que deixei no chão. Mas o pior barulho… era ela.

Mirella.

Toda vez que ela abria a boca, era como se algo em mim fosse arrancado pela raiz.

Eu dirigia com força, como se o volante fosse o pescoço de alguém.

Ela me batia no braço, me empurrava, gritava. Mas eu não parava.

— Você não é meu pai, nem meu dono! Eu não sou sua posse! — gritou.

— Eu ia sim dormir com alguém! Pra acabar logo com essa palhaçada de casamento!

Respirei fundo.

Aquela frase foi um tiro. E ela sabia.

Encostei o carro no acostamento com brutalidade.

Abri a porta, dei a volta, puxei a dela com força. Ela quase caiu, mas eu a segurei pelo braço.

Ficamos frente a frente. O coração dela disparava contra meu peito, e eu via nos olhos dela que por trás de toda aquela selvageria… tinha medo. E dor.

— Você se deu mal, Mirella. — disse firme, baixo. — Agora vai ser do meu jeito. Do pior jeito.

— EU QUERO FALAR COM O MEU PAI! — ela gritou, as lágrimas querendo cair.

Foi aí que quebrei.

Não gritei.

Não avancei.

Só disse:

— Seu pai está doente.

Ela travou. Literalmente.

O corpo todo congelou.

A boca entreaberta, mas nenhum som saiu.

— Ele não te contou porque sabia que você ia fugir de novo. — continuei. — Tá morrendo por dentro, mas se manteve de pé por você. Por medo de te deixar sozinha nesse mundo de bicho que a gente vive.

Ela me olhou. Os olhos arregalados. A respiração entrecortada.

A boca tremendo.

— Doente... — ela sussurrou, como se engolir a palavra fosse mais difícil do que qualquer ofensa que tinha jogado em mim.

— Não tem mais tempo. Ele quer ver você protegida. Casada com alguém que possa lidar com esse mundo — mesmo quando você estiver tentando destruir tudo ao redor.

Ela abaixou a cabeça.

Silêncio.

O tipo de silêncio que eu nunca tinha escutado dela. Nem quando a vi pela primeira vez. Nem quando a tirei da boate. Nem quando a joguei no banco do carro como uma bomba prestes a explodir.

Dessa vez… ela silenciou. Porque doeu.

Do jeito que ninguém vê. Do jeito que ninguém cura.

Continuei dirigindo.

Ela encostou a cabeça na janela.

Olhos fixos no nada.

Pela primeira vez, não me atacava.

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Comments

Jojô

Jojô

É compreensível a revolta dela, mas infelizmente esse é o mundo que ela vive e, precisa crescer, ter maturidade e seguir firme. Não é vai ser continuar se comportando como uma adolescente rebelde que as coisas vão mudar na volta dela.

2025-06-28

2

Marilia Carvalho Lima

Marilia Carvalho Lima

😔😔😢

2025-06-24

2

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