Mirella Sorrentino — 18 anos
Acordei com o coração acelerado, como se meus ossos pulassem dentro da pele.
Hoje... Hoje é o dia.
Três palavras e eu quase grito. Quase danço pelo quarto gelado de pedra. Me levanto num salto, ignorando o colchão fino, os lençóis ásperos, o crucifixo entortado na parede. Nada disso importa mais, nada disso nunca importou.
Meu cabelo claro estava preso num coque alto, bem no topo da cabeça, como uma coroa improvisada — e é assim que me sinto. Rainha do meu próprio retorno.
Quatro anos naquele lugar.
Quatro anos engolindo preces forçadas, castigos absurdos, gritos disfarçados de orações.
Me domaram?
Nãããããããããããão, isso nunca aconteceria.
Mas me quebraram? Um pouco. Várias vezes. Com joelhos no milho, com tapas disfarçados de lição, com palavras que ferem mais que mão, com as frases como “Seu pai te esqueceu" ou "Por isso está sozinha".
Eles machucaram. Mas não apagaram o fogo.
Só deixaram ele mais quente. Mais silencioso. Mais letal.
Hoje faz uma semana que completei dezoito anos. Ele — meu pai — vem me buscar. O atraso? Típico de quem tinha uma tarefa desagradável e deixava para a última hora. Sempre teve tempo para o mundo, menos para mim. Mas hoje, pela primeira vez em anos, estou ansiosa.
Ansiosa... por ver o rosto dele. Por escutar sua voz. Por entender se ele mudou.
E pela minha mãe... ah, minha mãe. Como será que ela está? Ainda tão submissa? Ainda tão calada? Ou será que finalmente criou coragem de me abraçar sem medo?
Não sei.
Mas quero descobrir.
Pela primeira vez em quatro anos, coloco os pés no chão com prazer. Hoje, não importa o tom de voz das freiras. Não importa quantos "pecados" dizem que eu carrego. O que importa é que a porta da minha cela vai se abrir.
E quando ela abrir... Que Deus esteja com quem tentar me trancar de novo.
Ele chegou pontualmente às dez.
Eu estava pronta desde as seis.
Vestido simples, o mais claro que consegui encontrar. Queria sair dali me sentindo leve, livre mesmo com o peso no peito.
Vi o carro preto estacionar pelo vitral do corredor. Reconheci de longe a postura dele: terno impecável, olhar frio, mãos escondidas nos bolsos. O mesmo homem de quatro anos atrás. Só mais velho. Mais pálido.
Desci devagar. As freiras me cercavam como se tivessem medo de que eu mantesse minha promessa de incendiar aquele convento no último dia.
Não estavam erradas.
Meu pai me olhou sem sorriso. Eu também não dei nenhum.
Sem abraço. Sem toque. Sem nem um “como você está, filha?”.
Ótimo. Assim ficava mais fácil manter a distância emocional que aprendi a cultivar.
Ele caminhou até o carro, abriu a porta para mim como se fosse um funcionário. Eu entrei sem olhar para ele. Mas, antes de fechar, girei o corpo, encarei as freiras e mostrei o dedo do meio com a maior satisfação do mundo.
— Isso é por cada milho que ajoelhei, suas infelizes. — murmurei, só para mim.
E ri. Ri de verdade.
Quando o carro começou a se mover, o riso murchou. As mãos suaram. Olhei pela janela tentando adivinhar como seria a casa, como estaria minha mãe, se ela teria me esperado com bolo, com abraço... ou com aquele silêncio constante que sempre a envolvia.
— Ela tá em casa? — perguntei, sem rodeios, encarando a estrada.
Meu pai demorou demais para responder.
— A mãe. — insisti, agora olhando direto para ele. — Tá em casa?
Foi aí que eu vi. O leve cerrar dos olhos. O maxilar tenso. A pele mais pálida.
— Ela morreu, Mirella.
As palavras caíram como um tiro que eu não esperava. O carro parecia pequeno demais de repente.
— O quê...? — questionei, — hoje? Ontem?
— Há um ano. Câncer. Descobriram tarde. Foi rápido.
— Há um ano? — repeti, com a voz afiada, quase num grito. — E ninguém me disse nada? Você... você deixou eu passar um ano aqui dentro achando que ela estava viva?
Ele não respondeu. Porque a culpa estava toda nos olhos dele, mas eu precisava espezinhar, mostrar que sim... a culpa era dele.
— VOCÊ ME DEIXOU AQUI COMO UM CÃO, ENQUANTO ELA MORRIA!
Quis bater no vidro. Quis gritar até perder a voz. Mas engoli o choro como se fosse veneno.
O carro parou diante de casa. Tudo... perfeito.
Limpo. Impecável. Sem balões. Sem flores. Sem vida.
Desci e caminhei direto para o quintal dos fundos, com passos que pareciam explodir no chão.
E então corri.
Corri sem olhar para trás, direto para o mato alto, para o velho jardim de árvores que cresciam como muralhas. Eu sempre fugia para ali quando era criança. Era meu mundo secreto. Meu abrigo. Meu esconderijo.
Caí de joelhos entre as raízes de uma das maiores árvores, e só então deixei o grito sair.
— Você me deixou sozinha, mãe... você foi embora... e eu nem sabia... EU NEM SABIA!
E ali, entre folhas e silêncio, chorei como não chorava desde os quatorze anos.
Meus joelhos doíam. As mãos estavam sujas de terra e o peito… uma bagunça entre raiva e vazio.
O vento balançava as folhas como um sussurro de consolo, mas eu não queria consolo. Queria voltar no tempo. Gritar. Esvaziar o mundo com os punhos.
Ouvi passos. Baixos. Lentos. Não me virei.
— Mirella...
A voz dele quebrou o ar como um vidro trincando.
— Eu devia ter contado antes. Eu devia ter... feito diferente.
Senti ele se ajoelhar atrás de mim. Um peso tão improvável. Meu pai, o homem de aço, ali na terra, ao meu nível. Quando olhei de canto, vi seus olhos marejados, o terno amassado no joelho, e a mão hesitante entre nós.
— Sua mãe te amava, minha filha. Até o último suspiro. Ela... ela falava seu nome dormindo. Me pedia pra tirar você de lá. Mas eu...
A voz falhou.
Pela primeira vez, eu vi meu pai chorar.
Sem esconder. Sem disfarçar. Só... chorar.
— Eu fiquei com medo. Do que você se tornaria sem freios. Do mundo em que vivemos. E quando ela se foi, eu... só restou você. E você tava longe. E tudo ficou escuro.
Meu coração, que estava preso no punho, afrouxou.
Eu devia gritar com ele. Devia dizer que não era suficiente. Que nada apagava o que ele me causou.
Mas naquele instante, eu não queria justiça.
Eu só queria alguém.
Virei devagar e, sem pensar, me joguei contra o peito dele. Forte. Como uma criança que não quer mais fingir que é adulta.
Ele me segurou como se o mundo fosse cair se me deixasse ir.
— Desculpa. — ele repetia baixinho. — Desculpa, filha. Eu te amo. Te amo tanto...
Eu não respondi.
Chorei quieta. Molhei a camisa dele e me permiti, por um minuto, ser filha.
Quando me afastei, os olhos dele estavam vermelhos. Os meus também.
Sem uma palavra, me levantei. Ele levantou junto.
Voltamos para casa em silêncio, lado a lado.
Pela primeira vez em anos, não éramos inimigos.
Só dois corações partidos tentando se manter inteiros.
Não falei nada.
Mas por dentro, algo endureceu de vez.
A dor se transformou em fúria.
E a fúria, em promessa.
Ninguém nunca mais ia me deixar no escuro.
Ninguém nunca mais ia decidir meu destino sem pagar por isso.
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Atualizado até capítulo 40
Comments
Kelly Val
autora ❤️ esse capítulo foi intenso, é possível sentir cada emoção...a fúria, a dor, o luto, o abandono...a culpa, a culpa de um pai que ama mas tem medo de demonstrar, um pai que se culpa por distanciar uma mãe de sua única filha...maravilhoso esse capítulo e sua inspiração Autora.
2025-07-02
2
Maria Luísa de Almeida franca Almeida franca
Parabéns autora pela história maravilhosa adorei cada capítulo não deixa de postar mais capítulos
2025-06-23
2
Magna Figueiredo
Genteeeeee...eu superrr faria isso /Joyful//Joyful//Joyful//Joyful//Joyful//Joyful//Joyful/
2025-07-04
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