O ar noturno de Lisboa trazia uma brisa ligeiramente úmida quando Lia saiu do restaurante. Ainda estava com a jaqueta do uniforme, as mangas arregaçadas e o rosto marcado pelo dia puxado. Erica já a esperava encostada num poste, mexendo no telemóvel, com um sorriso leve.
Erica — Finalmente, chefe. Tava a achar que tinhas dormido entre as panelas.
Lia — Quase. Se mais alguém me pedisse “só um salzinho a mais”, eu jogava era a frigideira.
Foram caminhando lado a lado pela calçada, em silêncio por alguns segundos.
Erica — Então… o que rolou? Tás com uma cara de quem fritou o cérebro e o coração.
Lia (suspira) — Tive uma cliente que virou o meu turno do avesso. Fez questão de me chamar pra comentar o prato — aquele que o Diogo preparou. E não foi só uma crítica técnica. Foi… pessoal.
Erica — Como assim, pessoal?
Lia — Ela disse que minha cozinha parece um escudo. Que eu cozinho pra me defender.
Erica — Uau. Ela é crítica ou terapeuta?
Lia — Não sei quem ela é. Só sei que mexeu comigo. E o pior? Eu fiquei sem reação. Ela falava como se me conhecesse. Como se tivesse entrado na minha cabeça.
Erica — E deixou o Diogo em paz?
Lia — Ela nem mencionou o nome dele. A crítica foi pra mim. E o olhar dela... como se estivesse analisando tudo.
Erica soltou um assobio, brincando com o tom.
Erica — Que tipo de femme fatale gastronômica foi essa?
Lia — O tipo que te desmonta com uma colherada.
Chegaram à porta de um bar pequeno, discreto, com uma luz de néon que piscava em tons azulados: Vai e Volta.
Erica — É aqui. Ambiente leve, música boa, drinks ótimos. Tu vais gostar.
Lia (cansada) — Se não gostar, vou fingir. Hoje não tenho energia nem pra reclamar com sinceridade.
Antes de entrarem, o telefone de Lia vibrou no bolso. O nome de Miguel brilhou na tela.
Ela fechou os olhos por um segundo e fez sinal para Erica.
Lia — Vai entrando e vê se achas uma mesa. Já te alcanço.
Erica entrou, desaparecendo no interior iluminado do bar.
Lia atendeu, a voz baixa e contida.
Lia — O que é agora?
Miguel — A tua falta de resposta ontem foi clara. Mas ainda assim… queria tentar conversar.
Lia — A sério, Miguel? Depois do que aconteceu, achas mesmo que ligar de forma casual vai resolver tudo?
Miguel — Eu só… sinto a tua falta. Sei que exagerei. Sei que me afastei. Mas—
Lia — Não é só isso. Tu não me vês. Não me ouves. Parece que só estás comigo porque sou conveniente.
Miguel — Lia, isso não é justo—
Lia — O que não é justo é eu passar os dias a carregar tudo sozinha e ainda ter que fingir que tá tudo bem quando tu decides aparecer. Hoje não.
Ela desligou. Guardou o telefone no bolso sem hesitar.
Entrou no bar, os ombros ainda tensos, o rosto queimando.
Procurou Erica com os olhos. A amiga acenava perto do balcão, com dois copos na mão.
Erica — Não consegui mesa, então peguei lugar aqui. Já te pedi um gin.
Lia caminhou até lá, forçando um sorriso. Mas quando se aproximou do balcão, parou de súbito.
Atrás do bar, com um shaker na mão e um leve brilho de ironia no olhar, estava ela — a mulher do restaurante. A crítica.
Os olhos das duas se cruzaram.
Lia sentiu o estômago apertar, as palavras se perderam na garganta.
Isabella (com um meio sorriso) — Boa noite, chef.
Lia piscou, surpresa.
Erica (olhando de uma pra outra) — Espera… eu tô a interromper alguma coisa?
Lia (ainda sem tirar os olhos da bartender) — Tu és…
Isabella — …a cliente de hoje. A crítica sem nome. Ou a mulher que falou demais. Pode escolher.
Erica (quase gargalhando) — Ah, então esta é a mulher misteriosa!
Lia se sentou devagar, o olhar fixo em Isabella.
Lia — Trabalhas aqui?
Isabella — Às vezes. Gosto de trocar os talheres por copos. E de observar os sabores que as pessoas trazem quando estão fora do prato.
Erica — E eu achava que só a Lia falava com frases de impacto…
Lia pegou o copo que Isabella acabara de preparar. Deu um gole, fez uma careta discreta, e soltou em tom seco:
Lia — O gin está... ousado. Um pouco desequilibrado, talvez. Muito limão, pouco caráter.
Isabella (sorrindo com calma) — Que pena. Eu achava que tinha acertado na medida.
Lia (fria) — Pode chamar o responsável do bar, por favor?
Isabella ergue uma sobrancelha, largou o shaker sobre o balcão e, com uma reverência teatral, respondeu com ironia:
Isabella — Olá, minha senhora. Em que posso ajudar? Me chamo Isabella. O que a minha funcionária fez de errado?
Lia arqueou as sobrancelhas, visivelmente irritada, mas manteve o olhar firme.
As duas se encararam por alguns segundos, em silêncio.
Erica (rindo e erguendo o copo) — Estou a adorar este menu. E o gin tá ótimo, obrigada.
Lia pousou o copo de gin no balcão com mais força do que precisava. Olhou para Erica, tentando disfarçar o tremor na voz.
Lia — Acho que vou embora. Amanhã tenho coisas a fazer.
Erica — Como assim? Amanhã estás de folga.
Lia — Mesmo assim. Preciso descansar. Não tô no clima.
Isabella continuava por trás do balcão, arrumando garrafas, mas claramente escutando cada palavra.
Erica — Vai deixar que um gin mal batido e uma troca de olhares te tirem a noite?
Lia (forçando um sorriso) — Não é isso. Só... não tô bem, tá? Fica aí. Aproveita. A noite é tua.
Erica suspirou, visivelmente frustrada.
Erica — Então vou contigo.
Lia — Não precisa. Fica. A sério. Eu só quero ir pra casa. Amanhã falo contigo.
Sem dar tempo para mais argumentos, Lia virou-se e caminhou em direção à saída. Erica a seguiu com o olhar, hesitando. Isabella, ainda calada, observava tudo com atenção.
Ao sair pela porta, Lia foi imediatamente surpreendida por uma voz que conhecia bem demais.
Miguel — Finalmente! Achei que ia ter que invadir o bar pra te encontrar.
Lia parou, surpresa, o corpo inteiro se contraindo ao ver Miguel ali — com os olhos vermelhos, a respiração descompassada e o tom alterado.
Lia — O que estás a fazer aqui?
Miguel — A tentar falar contigo! Desde ontem que me ignoras! Ficas a beber em barzinho como se nada tivesse acontecido?
Lia — Miguel, não tens o direito de vir atrás de mim assim. Vai embora.
Miguel — O quê? Agora sou eu o problema? Tu que te fazes de vítima!
Ele se aproximou demais. O dedo em riste, o rosto colado ao dela. A voz cada vez mais agressiva.
Miguel — És uma ingrata! Tanta coisa que eu faço por ti e—
Lia — Não me toques!
Miguel segurou o braço dela com força. Lia tentou se soltar. A tensão escalou num segundo.
De dentro do bar, Erica ouviu os gritos. Levantou-se de súbito.
Erica — Espera... é a Lia!
Ela correu até à porta. Isabella viu a amiga sair apressada e seguiu atrás, preocupada.
Do lado de fora, Erica viu Miguel a apertar o braço de Lia, o rosto dele distorcido pela raiva.
Erica — Larga ela AGORA!
Miguel — Isto não é da tua conta!
Erica — Eu vou-te mostrar o que é da minha conta!
Ela avançou sem hesitar, empurrando Miguel com força. Lia cambaleou para trás, livre, mas em choque.
Miguel (gritando) — Tá maluca?!
Isabella (séria, ao chegar) — Já chamei a polícia. Um movimento a mais e não sais daqui sem algemas.
Miguel virou-se para ela, desafiador.
Miguel — Tu achas que mandas em quê?
Isabella (com um tom gélido) — Neste bar, na calçada, e na porcaria da tua liberdade. Não sou só bartender. E acredita... eu sei lidar com homens como tu.
Miguel hesitou. Havia algo no olhar dela que não permitia dúvidas.
Nesse instante, todos notaram que Lia já não estava mais ali. Havia desaparecido no meio da rua, no susto, na dor.
Erica — Se voltares a seguir a Lia… eu juro por tudo que sou capaz de acabar contigo.
Miguel bufou, deu meia-volta e sumiu na escuridão.
O silêncio caiu pesado por alguns segundos.
Isabella — Ela vai ficar bem?
Erica (ainda ofegante) — Vai. Eu vou atrás dela agora.
Isabella pegou um guardanapo, rabiscou algo rápido, e entregou à amiga.
Isabella — Este é o meu número. Se precisares de ajuda, ou só de contar que ela está bem... liga, sim?
Erica assentiu, guardando o papel.
Erica — Obrigada… mesmo. Nem sei o que teria acontecido se não tivesses vindo.
Isabella — Algumas pessoas acham que só servimos copos. Mas sabemos ver quando algo não está certo.
Erica lançou um último olhar pela rua escura antes de partir.
Erica — Preciso encontrá-la. Ela pode estar a desabar em qualquer canto.
Isabella — Vai. E diz a ela que o gin... posso ajustar o sabor. Se ela voltar.
Erica sorriu, mesmo cansada. E correu atrás da amiga.
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Atualizado até capítulo 42
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