A cozinha do Sabores da Rua era, para Gabriel Souza, muito mais do que um ambiente de trabalho. Era seu campo de batalha particular. Um lugar onde ele enfrentava não só os desafios da gastronomia, mas também os monstros internos que, silenciosos, o acompanhavam em cada passo. Entre panelas, vapores e temperos, ele buscava redenção. Ali, entre o aroma de alho dourando e o som das facas cortando com precisão, encontrava um fio de equilíbrio.
O calor das bocas de fogão queimava a pele dos braços, o vapor embaçava os vidros da janela, e o tilintar metálico dos utensílios misturava-se com o burburinho dos funcionários. Mas, para Gabriel, todos aqueles sons compunham uma sinfonia reconfortante — familiar, previsível. Um mundo onde, ao menos ali, ele ainda tinha controle.
— Marcos, cuida da finalização da manteiga de ervas. Quero textura cremosa e sabor equilibrado. — pediu, sem tirar os olhos da bancada onde montava um prato com precisão cirúrgica.
— Sim, chefe. Já estou reduzindo a temperatura. — respondeu o cozinheiro, ajustando a panela.
Aos 32 anos, Gabriel conhecia bem o gosto amargo do fracasso. Seu antigo restaurante, construído com o suor de anos e o sonho de manter vivo o legado do pai, fechara as portas após uma série de erros, má administração e promessas não cumpridas. Não foi apenas um tombo financeiro — foi uma queda emocional, um esfacelamento de tudo em que acreditava.
Mas nada doía tanto quanto lembrar do olhar do pai no dia em que anunciou o encerramento.
— Você jogou tudo fora, Gabriel. — aquelas palavras se tornaram uma sentença, uma ferida aberta que ele carregava no peito até hoje.
Sempre que repetia mentalmente a frase, uma fisgada se espalhava por dentro, como se cada célula revivesse o julgamento. Aquilo não era só cobrança paterna — era uma ruptura. Porque Gabriel não havia falhado só nos negócios. Ele sentia que havia falhado como filho, como homem.
Mas não podia desistir.
O Sabores da Rua era sua segunda chance. Um pequeno restaurante, sim, mas com identidade própria. Cada prato que saía daquela cozinha era mais do que uma refeição — era uma declaração. Uma tentativa de provar, a si mesmo e ao mundo, que ele ainda era digno. Que podia recomeçar.
— Chefe, a entrega dos camarões chegou, mas vieram em tamanho menor que o solicitado. — alertou Jonas, o maître, adentrando a cozinha com uma prancheta nas mãos.
Gabriel suspirou e franziu a testa.
— Liga para o fornecedor. Se não resolver, vou adaptar o prato do dia. Dou um jeito, como sempre. — disse, firme.
Ele lavou as mãos lentamente, como se pudesse, naquele gesto, lavar também as dúvidas que insistiam em se acumular nos cantos da mente. Secou-as com um pano limpo e, ao levantar os olhos, encarou o próprio reflexo na superfície espelhada da coifa.
O homem diante dele tinha feições duras. A barba por fazer. Os olhos marcados por noites mal dormidas e lembranças mal resolvidas. Mas, no fundo, ali também havia algo que resistia. Uma centelha de determinação, de teimosia... de esperança.
E, naquele instante, como um sussurro atravessando o tempo, surgiu um nome:
Helena.
Ela era parte de sua história. Não a mais dolorosa, mas a mais silenciosa. Com ela, Gabriel havia sonhado uma vida. Planos simples, como cafés preguiçosos aos domingos, um apartamento com plantas na varanda, viagens de fim de semana para fugir da rotina.
Mas tudo desmoronou.
Lembrava-se nitidamente da última conversa. Estavam na sala, ele em pé, ela sentada no sofá, os olhos marejados.
— Você se fecha em tudo, Gabriel... eu não consigo mais. — a voz dela tremia, mas era firme. Era o adeus mais doce e, ao mesmo tempo, mais devastador que ele já ouvira.
Ele não respondeu. E não foi por frieza. Foi por medo. Por não saber como pedir que ela ficasse. Por não saber como ser vulnerável.
— Talvez eu tenha amado do jeito errado. — murmurou, ainda parado diante do reflexo. — Ou talvez... tenha medo de amar direito.
Voltou à cozinha como quem retorna de um sonho antigo. O salão do restaurante começava a se encher. O cheiro de alho refogado, tomates frescos e ervas perfumadas preenchia o ar e invadia a calçada. Era quase magnético. Os talheres tilintando, os sorrisos discretos, os casais brindando... tudo era um lembrete: o mundo seguia. E, de algum modo, ele também.
Tirou o avental, arrumou o cabelo com os dedos e foi ao salão. Caminhava entre as mesas com postura reta e um sorriso contido.
— Boa noite, pessoal. Hoje o prato especial é risoto de limão-siciliano com camarão crocante e toque de manteiga de ervas. Uma receita leve, fresca... e feita com carinho. Espero que surpreenda.
Clientes o olhavam com admiração. Gabriel, apesar de reservado, transmitia uma presença que acalmava. Era como se sua voz pausada e sua postura firme transformassem aquele restaurante num abrigo para quem procurava mais do que boa comida.
— Chefe, tem uma mesa reservada às 20h, próximo à janela. A Ana Clara virá com uma amiga. — informou Jonas, discretamente.
— Certo. Peça à equipe para dar atenção especial a elas. — disse, já voltando à cozinha.
Mais tarde, após o pico de movimento acalmar, Gabriel sentou-se com alguns amigos de longa data e membros da equipe em uma mesa mais afastada. O jantar pós-expediente era quase um ritual. A comida simples, caseira, feita com sobras bem aproveitadas, ganhava sabor de vitória.
— Esse molho tá uma poesia, chefe. — disse Marcos, limpando o prato com pão.
— Isso aqui dá vontade de casar, viu? — brincou Jonas, arrancando risadas do grupo.
Gabriel riu também. Um riso leve, sincero. Fazia tempo que não se permitia esse tipo de leveza.
— Vai nessa. Só não peçam conselho amoroso pra mim. — disse ele, meio rindo, meio entregando sua verdade.
— Você fala isso, mas é só fachada. Aposto que tá pronto pra viver um amor de novo. — provocou Ana, que se juntara ao grupo pouco depois.
Gabriel a olhou com um sorriso irônico.
— Tô pronto pra cozinhar. Isso eu garanto. O resto... vamos ver.
Ana insistiu:
— Você tem um coração bom. Só precisa confiar de novo. Nem todo mundo vai te deixar na mão.
Houve um silêncio respeitoso depois disso. Como se todos ali entendessem que, embora as feridas não sangrassem mais, ainda estavam sensíveis ao toque.
Gabriel levantou a taça de vinho e brindou.
— Aos que ficaram. Aos que recomeçam. Aos que, mesmo com medo, continuam tentando.
— Amém. — disseram em coro.
Por alguns minutos, todos falaram sobre sonhos antigos, viagens que queriam fazer, medos que aprenderam a domar. Gabriel ouviu mais do que falou. Mas, no fundo, aquela troca de histórias — reais, imperfeitas, humanas — o reconectava à vida.
"Talvez, só talvez... eu possa acreditar de novo. Talvez exista alguém que não precise entender tudo de mim, mas que não desista por causa do que ainda não entendo de mim mesmo."
Com os olhos perdidos na taça de vinho, ele suspirou.
"A culpa ainda mora aqui... Mas hoje ela parece menor."
Naquela noite, Gabriel adormeceu mais leve. E, mesmo sem saber, o destino já preparava um novo capítulo.
Um que começaria na próxima noite, às 20h, na mesa perto da janela. Quando seus olhos cruzassem, pela primeira vez, com os de Laura Menezes.
E, nesse instante silencioso, duas histórias começariam a se entrelaçar.
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Atualizado até capítulo 43
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