O aroma de cebola dourando na panela se misturava com especiarias quentes, azeite fresco e pão recém-saído do forno. A cozinha do restaurante Sabores da Rua era um universo à parte — quente, aromático e ritmado como uma sinfonia bem ensaiada. Panelas tilintavam, os fornos apitavam com assados prontos, facas deslizavam contra tábuas com precisão, e os cozinheiros se moviam com uma sincronia quase coreografada.
Gabriel Souza estava no centro de tudo. Vestindo o avental escuro com o logo do restaurante bordado em laranja, os olhos atentos percorrendo bancadas, ingredientes e rostos, ele parecia ter nascido para aquele lugar. Cada movimento seu era firme e meticuloso. Mexia o molho branco com uma mão, enquanto, com a outra, indicava ajustes na disposição dos pratos já finalizados. Os aromas que saíam das panelas eram irresistíveis, mas para Gabriel, mais do que sabor, ali havia redenção.
— Marcos, verifica a mise en place das saladas, por favor. Quero tudo impecável para o almoço executivo. — disse sem desviar a atenção da frigideira onde salteava cogumelos.
— Sim, chefe. Já finalizei a de grão-de-bico e tô terminando a de rúcula com manga. — respondeu Marcos, com o cenho franzido e o suor escorrendo da testa, visivelmente focado.
Gabriel assentiu com um breve aceno, sem perder o ritmo do trabalho. Mesmo com o ambiente agitado, sua mente era um redemoinho silencioso. Carregava tensões nos ombros como se fossem parte do uniforme. O restaurante era o seu mundo — mas também era a muralha que ele construíra entre ele e o que mais temia: o amor, o passado e tudo o que doía lembrar.
O telefone fixo tocou. Ele limpou as mãos no avental, aproximou-se e atendeu com o tom de voz firme, calmo, profissional:
— Sabores da Rua, Gabriel falando.
Do outro lado, a voz precisa e prática de sua assistente, Ana:
— Gabriel, confirmaram a reserva para o evento beneficente de sexta-feira. O buffet tá em andamento, a decoração fechada, o som contratado. Só falta o seu aval no cardápio.
— Perfeito, Ana. Me dá até o fim do dia. Vou finalizar os ajustes agora. — disse ele, já se virando para pegar a prancheta onde anotava os ingredientes do jantar especial.
— Ótimo. Vai ser um sucesso, como sempre. — completou ela, encerrando a ligação.
Ele apoiou as mãos na bancada de inox e respirou fundo. Observou por um instante a janela da cozinha que dava para a rua movimentada. Do lado de fora, o mundo parecia vibrante e leve — crianças rindo, um senhor empurrando um carrinho de pipoca, jovens conversando alto. Um casal caminhava de mãos dadas, sorrindo, como se o mundo fosse um lugar seguro.
Gabriel apertou os lábios e desviou o olhar, tentando afastar o aperto que crescia no peito. Aquela dor era antiga, mas ainda insistia em visitar. Doía ver a vida seguindo tão facilmente para os outros, enquanto ele travava batalhas diárias com fantasmas que não deixavam de assombrá-lo.
— Foca no presente, Gabriel... — murmurou para si mesmo, quase como um lembrete diário.
Ele caminhou de volta para o fogão, onde um risoto de açafrão exigia sua atenção. Mexia o arroz com delicadeza, mantendo a cremosidade exata. Enquanto o aroma se espalhava, sua mente o traiu mais uma vez.
"No passado, eu era outro homem..."
Era inevitável. Vanessa. O nome ecoava como uma ferida que nunca cicatrizava. Sua ex-noiva, sua ruína silenciosa.
“Vanessa...”
O nome sozinho trazia imagens: o sorriso sedutor, a voz doce e afiada, os olhos que prometiam mundos e entregaram desilusões.
— Egoísta... interesseira... — murmurou, enquanto mexia o risoto como se quisesse dissolver aquela lembrança no caldo espesso.
Vanessa fora seu amor mais profundo e sua decepção mais destruidora. Durante dois anos, ele viveu por ela. Reformou o apartamento para os dois, investiu no futuro, confiou cegamente. E foi justamente essa confiança que o destruiu. Descobriu a traição por acaso — um e-mail aberto no computador dela. Uma mensagem curta, crua, com risos e fotos que ele nunca poderia apagar da memória.
— Fui um idiota. — murmurou, com os punhos cerrados. — Um cego apaixonado.
— Chefe? Tá tudo bem? — perguntou Marcos, ao notar a expressão dele.
Gabriel voltou ao presente num sobressalto.
— Tudo certo. Concentra no molho da salada, tá ficando muito ácido. Ajusta com um fio de mel e limão.
— Pode deixar.
Voltando ao preparo, ele respirou fundo. Apesar das mágoas, ainda havia uma parte sua que desejava voltar a sorrir com leveza. Uma parte que não se deixava apagar. E, por mais que não admitisse em voz alta, sonhava sim, com o amor verdadeiro — com uma mulher que fosse simples, autêntica, e que não mentisse.
"Quero alguém que me veja com verdade. Que não precise de promessas vazias. Que ande ao meu lado, não à minha frente nem atrás."
Ele via os casais felizes com certo ceticismo, mas também com inveja. Não uma inveja amarga, e sim... uma esperança discreta de que talvez, algum dia, ele também reencontrasse esse tipo de alegria.
— Gabriel? — chamou Ana, entrando na cozinha.
— Pode falar.
— Só um lembrete: hoje às 20h tem uma reserva da Ana Clara pra duas pessoas. Mesa perto da janela, como sempre.
— Ah, sim. Aquela sua amiga jornalista, né?
— Isso. Vai vir com uma amiga nova hoje. Disse que é especial. — Ana sorriu de lado. — Acho que você vai gostar dela.
Gabriel arqueou uma sobrancelha.
— Desde quando você acha que eu vou gostar de alguém?
— Desde que você parou de viver e começou só a trabalhar. Você precisa de uma pausa, chefe.
Ele sorriu de canto — um gesto raro, mas sincero.
— Uma pausa... — repetiu como quem não sabia mais o que isso significava.
— Só lembra de não se fechar. Às vezes, o novo começa numa conversa simples. Numa noite qualquer.
Ela saiu, deixando-o pensativo.
Gabriel olhou para a bancada. O risoto estava pronto. Os legumes grelhados no ponto. A sobremesa — um creme brulée com baunilha artesanal — já descansava na geladeira. Ele sabia cozinhar para centenas, mas ainda não sabia se era capaz de abrir o coração para uma única pessoa novamente.
"Será que um recomeço é mesmo possível?"
Ele enxugou as mãos lentamente, limpando o suor da testa. Fitou o reflexo na janela da cozinha. Viu ali um homem forte, mas cansado. Um homem que já amou com tudo e caiu feio. Mas que, no fundo, queria — ainda que não admitisse — recomeçar.
"Quero algo diferente. Alguém que me ensine a confiar de novo, sem pressa. Alguém que entre devagar e fique. Que toque meu caos com delicadeza."
E mal sabia ele que naquela mesma noite, às 20h, aquela mesa reservada perto da janela não traria apenas mais uma cliente — traria a chance de um novo capítulo. A presença sutil, mas marcante, de alguém que poderia enxergar além da armadura. Uma mulher com olhos de palavra e alma de poesia.
Laura Menezes.
O destino, calado por tanto tempo, estava prestes a falar. E quando o destino decide agir, nem o coração mais fechado permanece intocado por muito tempo.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 43
Comments