A luz do meio-dia iluminava o pequeno escritório da revista VivaCidade, atravessando a persiana parcialmente aberta e desenhando linhas douradas sobre a mesa de Laura Menezes. Sentada diante do computador, ela digitava com a leveza de quem transformava sentimentos em poesia. As palavras iam se moldando lentamente na tela: uma matéria sobre cores, transformações urbanas e a alma invisível que os grafites imprimiam na cidade.
Mas, embora escrevesse sobre arte e liberdade, sua mente divagava por territórios menos coloridos.
O som das teclas misturava-se ao leve jazz instrumental que tocava em segundo plano. Aquilo — a música suave, o murmúrio dos colegas, o cheiro de café recém-passado — era seu refúgio. Ali, entre ideias e crônicas, Laura encontrava alguma paz.
Enquanto ajeitava uma frase no parágrafo final, seus dedos pararam. Ela leu o trecho mais uma vez: “A arte de rua é um grito silencioso de quem já desistiu de gritar.”
— E se eu pudesse colorir também minha própria vida? — sussurrou, sem perceber.
Olhou para a tela, mas parecia procurar algo além das palavras. Queria encontrar respostas, talvez coragem. Queria sentir que o recomeço que tanto escrevia era também possível dentro dela. Mas o passado... ele ainda vivia ali.
A imagem de Pedro, seu ex-namorado, surgiu como uma névoa escura que insistia em invadir seus dias de sol. Um relacionamento que começou como um sonho romântico e terminou em noites pesadas, olhares de culpa e controle disfarçado de afeto.
Lembrava-se do rosto dele, da forma como sorria em público e como mudava no silêncio da casa. Pedro era intenso — demais. No começo, ela confundiu paixão com zelo. Mas, com o tempo, as palavras doces viraram cobranças, e os carinhos deram lugar a manipulações veladas.
Uma memória, em especial, ainda a fazia estremecer.
Era noite, e ela estava prestes a sair para encontrar Ana. Pedro se irritou por ela usar um vestido novo.
— Tá tentando chamar atenção de quem? — ele perguntara, com a voz baixa e ameaçadora.
— De ninguém. Só queria me sentir bem. — respondeu, tentando manter a calma.
— Você nunca vai encontrar alguém como eu, Laura. Ninguém vai te amar como eu te amo. — disse, os olhos apertados como se o amor fosse uma arma.
Ela engoliu o choro naquela noite, mas no dia seguinte, empacotou a alma e partiu. Não sabia exatamente pra onde estava indo, mas sabia de onde não queria mais estar.
E isso foi o suficiente.
Por fora, parecia forte. Mas por dentro, ainda havia ecos. Vozes que diziam que ela não era suficiente. Que ninguém a amaria de verdade. Que liberdade era um risco.
Há alguns dias, viu uma foto antiga ao rolar o feed do celular. Era ela e Pedro, numa praia. Sorrisos congelados no tempo. Um retrato falso de felicidade. Sentiu uma mistura estranha de nostalgia e alívio. Aquela imagem não era mais ela. Nem ele. Nem o que viveram.
— Não. Eu não sou mais aquela mulher. — disse em voz baixa, como quem reafirma um pacto consigo mesma.
Nesse instante, a porta do escritório se abriu. Ana, com seus cabelos presos em um coque bagunçado e a energia vibrante de sempre, entrou com duas xícaras de café.
— Alguém aqui precisa de uma pausa e de cafeína. — brincou, entregando uma das xícaras à amiga.
Laura sorriu com gratidão, e Ana logo puxou a cadeira ao lado.
— Como vai o texto da arte urbana? — perguntou, cruzando as pernas e soprando a borda da xícara.
— Quase pronto. Mas acho que ando mais introspectiva do que inspirada. — respondeu Laura, passando a mão pelos cabelos, já um pouco desfeitos pelo vento da manhã.
Ana a observou por alguns segundos, antes de falar:
— Você anda pensativa demais, Laura. Ainda tá presa naquilo que passou, né?
Laura abaixou os olhos.
— Às vezes, sim. É como se... mesmo livre, ainda tivesse correntes invisíveis.
— Eu entendo. Mas sabe, a gente só começa a viver de novo quando para de sobreviver. E hoje, à noite, você vai viver um pouco, nem que eu tenha que te arrastar pra isso. — disse Ana, sorrindo com os olhos.
Laura soltou uma risada fraca.
— Você já sabe como me convencer.
— Jantar marcado às 20h. Restaurante novo. Mesa reservada perto da janela. Nada de trabalho, nada de passado. Só boa comida, risadas e, talvez, vinho.
— Promete não me deixar sozinha nem por um minuto? — perguntou Laura, meio brincando, meio pedindo socorro.
— Prometo. Mas, ó... se surgir alguém interessante por lá, também prometo sair discretamente, tá? — piscou, fazendo Laura rir de verdade.
Durante a tarde, Laura decidiu sair um pouco. Foi caminhar pela praça da cidade. Precisava de ar — e de si mesma.
O céu estava límpido, o ar leve. Crianças corriam atrás de pombos, uma senhora vendia milho cozido sob um guarda-sol florido, e um homem tocava violão debaixo de uma árvore. A melodia era suave, quase triste. Mas bonita.
Laura sentou-se em um banco e fechou os olhos por alguns minutos. Deixou a música entrar, os sons da cidade se misturarem com o cheiro doce dos churros, e sentiu, pela primeira vez em semanas, uma pontinha de esperança.
— A vida continua. E talvez... possa ser boa de novo. — sussurrou para si mesma.
Ao voltar para a redação, estava diferente. Mais leve. As palavras fluíam com mais naturalidade. Começou a rascunhar uma matéria sobre recomeços — não apenas os urbanos, mas os pessoais. Escrevia como quem costura a própria alma com letras.
"Recomeçar não é apagar o passado. É decidir que ele não vai escrever o final."
Estava tão imersa que não ouviu o celular vibrar de imediato. Quando pegou o aparelho, sentiu um calafrio.
“Laura, podemos conversar? Sei que errei.” — Pedro
O mundo pareceu congelar por um segundo. Ela segurou o celular com mais força do que o necessário. Leu e releu a mensagem, como se tentasse decifrar o tom. Arrependimento? Manipulação? Desespero?
Fechou os olhos. Lembrou-se das lágrimas que derramou sozinha, das vezes em que precisou explicar o inexplicável para si mesma, das madrugadas em silêncio absoluto, tentando entender como se perdeu.
E então, digitou:
“Não é hora. Preciso cuidar de mim agora.”
Respirou fundo. E apagou o número da agenda.
Ao olhar para fora, o sol começava a se pôr. A luz laranja invadia o escritório, refletindo nas janelas dos prédios vizinhos. Era um espetáculo silencioso, mas poderoso. Como ela. Como o que estava sentindo.
“O passado não vai me vencer. Não vai me parar. Eu mereço uma nova história — e dessa vez, escrita por mim, com calma, com verdade, com amor. Com alguém que me veja inteira, e não apenas como sombra de algo que já fui.”
Naquela noite, Laura se arrumaria com cuidado. Não para impressionar ninguém, mas para celebrar a si mesma.
O jantar não era apenas um encontro com uma amiga.
Era um encontro com a mulher que ela estava se tornando.
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Atualizado até capítulo 43
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