Entre a honra e o sangue

Nápoles — 3h17 da manhã.

A cidade dormia embriagada de sua própria decadência. Ruas estreitas e molhadas refletiam os postes amarelados como olhos cansados. Nos becos onde os turistas não ousavam pisar, negócios antigos continuavam respirando, discretos, invisíveis.

Alessandro caminhava com passos firmes, os ombros cobertos por um sobretudo preto. O vento cortava o rosto como facas de gelo, mas ele mal sentia. O rubi em seu bolso ardia como brasa contra o peito. Aquela joia — aquela maldita joia — havia rasgado o véu do tempo e trazido de volta tudo o que ele passou anos tentando enterrar.

Parou diante da porta de ferro enferrujado. Tocou duas vezes. Pausa. Mais uma batida.

A porta se abriu com um rangido grave, e um homem enorme, de barba grisalha e olhar desconfiado, o avaliou com a mão perto do coldre.

— Alessandro De Luca — disse ele. — Há quanto tempo...

— Onde está Enzo? — cortou Alessandro. — Não vim conversar com porteiros.

O segurança não insistiu. Apenas deu espaço. E Alessandro entrou.

O salão subterrâneo era escuro, cheio de fumaça e cheiro de vinho antigo. Um altar profano para fantasmas mafiosos que nunca descansaram. Relíquias de guerras esquecidas enfeitavam as paredes: armas antigas, fotos em preto e branco, recortes de jornais manchados de sangue e glória.

Enzo Calderone estava à mesa do fundo. Sozinho. Um velho leão de juba rala, pele marcada e olhos fundos. Tinha a alma manchada por todos os pecados que o dinheiro da máfia podia comprar. Mas ainda assim… havia respeito nele. E perigo.

— Nunca imaginei te ver aqui outra vez — murmurou Enzo, sem se levantar.

— Nunca imaginei que ainda estivesse vivo — respondeu Alessandro, sentando-se de frente, os olhos de aço frio.

— Muitos tentaram me enterrar. Alguns até cavaram bem fundo. Mas eu sou como as raízes desta cidade. Podres, mas firmes.

O silêncio que se seguiu foi cortante.

Alessandro colocou o colar sobre a mesa. O rubi brilhou sob a lâmpada pendente como se fosse feito de sangue recém-derramado.

Enzo empalideceu.

— Onde conseguiu isso?

— Com Isabella Moretti.

Enzo tragou em seco.

— Então... é verdade. Você está com ela.

— Eu me lembrava daquele colar — disse Alessandro, voz firme. — Vi esse rubi quando era menino. Antes de fugirem comigo. Antes do massacre. Ela estava lá. Aquela garota. A filha do Don.

— Isabella…

— Por que me deixaram viver, Enzo? Por que não me mataram como fizeram com meu pai?

Enzo coçou a barba com dedos trêmulos. Tomou um gole da bebida. Seus olhos vagaram até o teto, como se lá houvesse alguma resposta divina.

— Porque o Don é um estrategista frio. Ele via em você um projeto. Um instrumento. Queria dobrar o último De Luca, criar um cão fiel com alma de inimigo. Mas... você escapou.

— E agora voltei. — Alessandro se inclinou para frente. — E a filha dele é a única coisa que me impede de explodir aquele castelo de mármore com todos dentro.

— Você acha que Isabella é inocente? — Enzo encostou-se na cadeira, olhos semicerrados. — Você acha que ela não sabe a linhagem que carrega?

— Sei que ela é diferente. Que foi criada como prisioneira de ouro, que teve o nome dela usado como escudo e arma. Eu vi nos olhos dela. A mesma fome de liberdade. A mesma raiva contida. Somos feitos do mesmo inferno, Enzo.

Enzo respirou fundo.

— Então você está mais perdido do que eu pensava.

— Ou mais lúcido do que nunca.

O velho mafioso observou Alessandro por longos segundos. Depois, puxou algo do bolso: um isqueiro antigo com o brasão dos Moretti.

— O Don já sabe. Que ela está com você. Está furioso. Ferido. Você sabe o que ele faz quando sangra, Alessandro.

— Eu vou protegê-la.

— Vai morrer por ela?

— Se for preciso.

O silêncio voltou, dessa vez mais pesado. Enzo apagou o cigarro e falou como quem enterra um segredo:

— Escuta bem… Don Vittorio tem planos pra ela. Planos antigos. O casamento com o russo, Alexei Antonov, era só a fachada. O que ele quer mesmo é o controle do sul da Itália. E Isabella… é a chave de tudo.

— Não vai acontecer — rosnou Alessandro. — Ninguém toca nela.

— Então se prepare. Porque ele vai vir atrás de você. Vai usar tudo o que tem: dinheiro, aliados, lembranças, cadáveres. E quando te derrubar, vai sorrir. Como sempre fez.

Alessandro se levantou.

Olhou para o colar, pegou-o com firmeza e o guardou no bolso de novo. Mas agora, carregava o peso da verdade.

— Ele não sabe quem eu me tornei.

E está prestes a descobrir.

E saiu.

Lá fora, o vento parecia mais frio. As ruas mais estreitas.

O passado não estava mais atrás dele.

Estava correndo ao lado.

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Comments

Calliope

Calliope

Estou apaixonada pelos personagens, parabéns!

2025-06-14

2

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