Sicília, 1994.
Villa Moretti.
O piano ecoava pelo salão como um sussurro melancólico. As mãos pequenas de Isabella deslizavam pelas teclas com hesitação. A música não vinha da alma — vinha da obrigação. Tudo, naquela casa, vinha do dever. Da imagem. Do nome.
Ela estava com doze anos, mas sentia que já tinha vivido uma vida inteira sob os olhos severos de criados, guardas e capangas que não ousavam olhá-la diretamente nos olhos. Porque ela não era uma menina qualquer.
Ela era Isabella Moretti, filha única do temido Don Vittorio Moretti, patriarca de uma das famílias mais influentes da máfia italiana.
— Muito bem, signorina — disse a governanta, com um aceno rígido. — Agora pratique os acordes do segundo movimento.
Mas Isabella fechou o piano. Estava farta de música, de regras, de perfeição. Levantou-se sem dizer uma palavra e atravessou o corredor decorado com tapeçarias vermelhas e quadros de homens carrancudos. Sua história estava escrita naquelas paredes — séculos de sangue e poder.
Do lado de fora, o sol da Sicília dourava o jardim com intensidade. Isabella correu para longe da casa, para o único lugar onde podia respirar: os fundos da propriedade, onde o estábulo abandonado servia de refúgio.
Lá, Matteo já a esperava. Era jovem, alto, com olhar duro mas gentil com ela. Fora designado por Don Vittorio para protegê-la desde pequena, e Isabella o via como uma espécie de irmão mais velho.
— Vai se meter em apuros com a velha governanta — disse ele, cruzando os braços.
— Ela que venha. Não tenho medo dela — respondeu Isabella, arremessando os sapatos longe. — Quero lutar hoje.
Matteo sorriu. Pegou dois pedaços de madeira. Espadas improvisadas.
— Muito bem. Vamos ver se consegue me desarmar, signorina Moretti.
Ela atacou com fúria. Matteo a treinava com paciência e seriedade. Sabia que, por trás da mansidão forçada, havia uma tempestade crescendo.
— Um dia, você vai precisar dessas habilidades, Bella — ele disse, segurando seu braço após uma investida. — Não por esporte. Mas pra sobreviver.
— Sobreviver a quê?
— Ao seu nome.
Ela parou. Olhou para ele, suada e ofegante.
— Eu não quero ser uma Moretti. Eu quero fugir. Ser uma mulher livre.
Matteo se agachou, olhando-a nos olhos.
— Então aprenda a ser duas coisas ao mesmo tempo. Seja o que o mundo vê… e o que você realmente é. Esconda a liberdade atrás da máscara do sangue.
Essas palavras ficariam com ela para sempre.
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Mais tarde, naquele mesmo dia, Isabella escutou gritos abafados vindo do hall da villa. Curiosa, correu até a escada, onde pôde observar escondida entre os balaústres.
Dois homens entravam pela porta principal, arrastando um menino algemado, coberto de sujeira. Ele resistia, mordia, chutava, gritava com a fúria de um animal encurralado.
— Don Vittorio quer falar com ele — disse um dos capangas.
— Ele é só um moleque! — retrucou o outro. — Mas é sangue de De Luca. E isso basta.
Isabella arregalou os olhos.
O nome De Luca era proibido naquela casa. Seu pai o proferia como se fosse um maldição.
A garota seguiu os homens com cuidado. O menino foi levado ao salão menor, onde Don Vittorio já os esperava. O Don estava sentado como um imperador romano, vestindo um terno de linho escuro, com um charuto aceso na mão. Seus olhos pareciam de pedra.
— Qual é o seu nome? — perguntou ele.
O menino cuspiu no chão.
— Alessandro.
Isabella conteve a respiração.
Aquela foi a primeira vez que ouviu o nome dele. O nome que voltaria para assombrar seu futuro.
— Sabe por que está aqui, Alessandro? — perguntou o Don.
— Porque vocês são covardes. Porque mataram meu pai pelas costas.
Vittorio sorriu com desdém.
— Seu pai traiu. E traição tem preço. Mas você… — ele se levantou. — Você tem olhos de ódio. E isso é útil. Por hoje, vai viver.
Os capangas o levaram para o porão.
Isabella correu pela lateral da casa, seguindo seu instinto. Escondeu-se atrás das colunas de pedra do jardim interno. E então o viu. Alessandro, sendo arrastado.
Ele a viu também.
Seus olhos se cruzaram por um instante que pareceu eterno.
Olhos cinzentos. Olhos que já conheciam a dor.
E, naquele momento, algo mudou em Isabella. Não sentiu pena. Sentiu conexão. Como se, por um milagre perverso do destino, suas histórias tivessem sido entrelaçadas.
Depois disso, nunca mais viu o menino.
Mas nunca o esqueceu.
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Naquela noite, Don Vittorio entrou no quarto dela sem avisar. Carregava um presente: um colar de ouro branco, com um rubi pendurado no centro.
— É um símbolo da nossa linhagem. Carregue-o com orgulho.
— Ele é pesado — disse ela.
— Como o nosso nome — respondeu o Don. — Lembre-se sempre, Isabella. Ser Moretti não é uma escolha. É um destino.
Ela aceitou o colar. Mas naquele momento, tomou uma decisão silenciosa:
Um dia, ela fugiria daquele mundo.
O que Isabella não sabia é que o menino que viu ser levado para o porão… seria o homem por quem seu coração queimaria anos depois.
E que o rubi em seu pescoço marcaria o início de uma história de amor… e vingança.
Ela era a filha do Don.
Cresceu cercada por mármore, mordomos e medo.
Tinha vestidos de seda antes mesmo de aprender a escrever, sapatos italianos sob medida e tutores particulares que a ensinavam francês, latim e etiqueta — mas nenhum deles a ensinou o que fazer quando se escutava tiros no meio da noite. Ou como conter o tremor nas mãos ao ver sangue nos sapatos do pai.
Isabella Moretti era tratada como uma princesa por fora, mas por dentro, era uma prisioneira. Sua infância foi uma gaiola de ouro com barras invisíveis feitas de expectativas, lealdades e silêncio.
— Você é uma Moretti — diziam todos, como se isso fosse uma armadura.
Mas Isabella sentia como se fosse uma maldição.
Ela sonhava com liberdade. Com ser uma mulher que escrevia livros, atravessava países sozinha, e dormia sem guarda-costas do lado de fora da porta.
Em segredo, lia romances escondida entre os jardins e rabiscava pensamentos em cadernos que ninguém nunca poderia ver. Amava com intensidade tudo o que não podia tocar: música popular, filmes proibidos, ruas sem motoristas à espreita. E amava o que jamais teve: o direito de escolher quem ser.
Seu pai, Don Vittorio, dizia que ela era feita para governar com inteligência. Que um dia, mesmo sem trono visível, ela seria mais perigosa do que qualquer homem armado.
— Você é minha herdeira silenciosa — ele dizia, acariciando sua cabeça. — E todos que ousarem tocá-la, morrerão.
Mas Isabella não queria que matassem por ela.
Ela queria viver por si mesma.
E quando viu aquele garoto ser levado — sujo, acorrentado, com fúria nos olhos — algo nela mudou. Ele era como ela, mesmo sendo o inimigo. Um pássaro com as asas arrancadas, lutando para sobreviver num mundo onde ninguém escolhia seu destino.
Naquela noite, deitada em sua cama com o rubi pesando contra o peito, Isabella jurou que seria diferente.
Que um dia, encontraria uma brecha naquele mundo de sombras.
E escaparia.
Mas o destino, com sua ironia cruel, a levaria de volta ao mesmo ponto.
De volta a Alessandro De Luca.
De volta ao fogo.
O apartamento estava mergulhado em silêncio.
Alessandro girava lentamente o copo de uísque entre os dedos, o olhar perdido na penumbra. No quarto ao lado, Isabella dormia — ou fingia dormir. Depois da noite intensa, os dois haviam trocado poucas palavras. O desejo ainda queimava, mas o mundo em volta deles parecia prestes a desabar.
Sobre a mesa de madeira, repousava algo que ele encontrara sem querer, quando ela deixara o quarto: um colar.
O colar.
Corrente fina de ouro branco. Um único rubi em forma de gota.
Ele o segurou entre os dedos, sentindo o peso da joia e de algo mais — algo escondido, enterrado na memória.
De repente, veio como uma lâmina.
Um clarão. Um sussurro.
Pedras brancas. Uma casa gigantesca. O cheiro do mar. E... olhos.
Olhos castanhos, de menina. Olhando para ele entre colunas de pedra.
Ele fechou os olhos e se viu, criança outra vez. Preso. Sujo. Humilhado.
A raiva latente, o punho fechado. E o Don Moretti, com seu olhar impenetrável.
Mas... ela estava lá.
A garota.
O colar.
Ela o usava naquela época.
Ele se lembrava.
— Merda… — sussurrou, soltando o copo na mesa com violência.
Era ela.
Ela estava lá.
A filha do homem que destruiu sua família.
A menina entre as colunas.
A herdeira do nome que ele jurou odiar até o fim.
Alessandro se levantou de súbito, como se o ar tivesse se tornado irrespirável. O mundo girava. Tudo fazia sentido agora. O porquê de Isabella mexer com ele de forma tão visceral. O motivo do desejo vir misturado ao conflito, à dor, ao impulso de proteger... e destruir.
Ela não era uma estranha.
Ela era o passado disfarçado de futuro.
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Isabella acordou com o som da porta se fechando.
Saiu do quarto com o coração apertado e encontrou o colar sobre a mesa, repousado com cuidado — ou com desprezo. Não havia bilhete. Não havia Alessandro.
Apenas o eco do que havia sido tocado... e agora estava à beira de se romper.
Ela segurou o rubi contra o peito e sentiu uma pontada no fundo da alma.
Ele se lembrava.
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Atualizado até capítulo 30
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