Cortes Invisíveis

O silêncio da sala dos residentes era tão incômodo quanto a luz fria das lâmpadas fluorescentes. Isadora se sentou na beirada do sofá desgastado, os dedos ainda trêmulos de adrenalina, embora tentasse esconder. Sua cabeça fervilhava com a cena que acabara de viver.

Ela tinha encarado Leonardo V. Santoro. O cirurgião-chefe mais temido do hospital. E mais: tinha sido firme, técnica e, acima de tudo, humana. Mesmo diante da frieza dele.

Beatriz, com um copo de café nas mãos, quebrou o silêncio:

— Tem gente que trabalha cinco anos aqui e nunca troca uma palavra com ele. Você fez isso no seu primeiro procedimento.

— Foi uma drenagem, não uma cirurgia cardíaca — rebateu Isadora, ainda tentando manter a humildade.

— Foi uma drenagem em um paciente morrendo, com o Santoro te assistindo como um predador — Miguel acrescentou, abrindo um pacote de bolachas. — E você não congelou. Isso diz muita coisa.

Isadora não respondeu. Porque por dentro, a verdade era que ela tinha congelado… só por dentro. Só por um segundo. O olhar dele a atravessou como um bisturi. E, mesmo tentando se manter racional, havia algo naquilo que a desestabilizava — e não era só medo. Era algo mais primitivo. Algo que ela não queria nomear.

Enquanto isso, no nono andar, Leonardo estava sentado em sua sala. O som ritmado do ventilador de teto contrastava com o silêncio cortante do ambiente. Ele girava um pequeno bisturi de treinamento entre os dedos, absorto. Seu rosto estava sério, como sempre, mas havia algo em seus olhos — uma hesitação rara.

"Residente nova", pensou. "Técnica correta, mas impulsiva. Boa leitura clínica. Orgulhosa."

E corajosa. Maldita coragem.

Desde que perdera um paciente numa cirurgia que deveria ser simples — anos atrás —, Leonardo passara a ser implacável. O distanciamento era sua armadura. A técnica, sua religião. Não envolvia o emocional, não criava laços com residentes, pacientes ou colegas. Nada que pudesse comprometer sua precisão.

Mas agora… aquela residente de olhos atentos e voz firme o fizera lembrar da época em que ele também era assim: cheio de fé nos detalhes, acreditando que podia mudar vidas com uma pinça e empatia.

Fechou os olhos por um instante. Imagens antigas invadiram sua mente: o rosto da mãe chorando na sala de espera, a voz do diretor lhe dizendo que o garoto de doze anos não resistira. A culpa gravada a bisturi na memória.

Respirou fundo. “Não é hora pra isso.”

Na ala dos residentes, Isadora trocava de roupa quando o pager apitou: “Revisão de prontuários com o Dr. Santoro – sala de reuniões 2B. 15 minutos.”

Ela franziu o cenho.

— Por que eu? — murmurou, quase para si mesma.

Na sala 2B, Leonardo folheava os relatórios com a impaciência metódica de quem não tolerava deslizes. Quando Isadora entrou, pontual e centrada, ele sequer levantou os olhos.

— Feche a porta.

Ela obedeceu.

— Você tomou uma decisão rápida hoje cedo. Poderia ter custado a vida do paciente.

Ela se manteve em pé, postura impecável.

— E se eu não tivesse tomado, ele teria morrido sufocado por um colapso pulmonar. Não me arrependo da escolha, mas sei que poderia ser feita com mais precisão. Vim aqui para aprender. Não para ser perfeita no primeiro dia.

Leonardo finalmente a olhou.

Ela sustentou o olhar. O coração batia acelerado, mas sua voz não tremia. Ele assentiu levemente, quase imperceptível.

— Você tem iniciativa. Mas emoção demais.

— E o senhor tem de menos.

Ele arqueou uma sobrancelha. Não por provocação — mas como se, por um segundo, aquilo tivesse arrancado algo dele.

— Talvez — respondeu, com a voz mais baixa que o habitual. — Mas emoção não salva vidas, residente. Técnica salva.

Ela se aproximou, ousando dar um passo à frente. Não por afronta, mas por convicção.

— Técnica sem empatia é autópsia. Não cirurgia.

Desta vez, ele não respondeu de imediato. A tensão na sala era palpável, densa, quase elétrica. Isadora pensou que ele iria gritar. Ou mandá-la embora. Mas, em vez disso, Leonardo fechou a pasta e murmurou:

— Revisão encerrada.

Ela se virou para sair, mas antes de passar pela porta, ouviu a voz dele, mais baixa:

— O dreno... foi bem posicionado.

Isadora parou. Olhou por sobre o ombro.

— Obrigada, doutor.

E então saiu.

Mais tarde, sozinha no refeitório vazio, Isadora riu de si mesma. Estava no segundo dia de residência, e já havia sido chamada por Santoro. Já havia desafiado ele — duas vezes. E, por algum motivo, sentia que aquilo era apenas o começo.

Ela ainda não sabia, mas o bisturi que cortava pele e músculo também começava a abrir outras camadas. Camadas que nenhum dos dois estava preparado para enfrentar.

E enquanto o hospital respirava seus silêncios noturnos, Leonardo V. Santoro fitava pela janela o céu escuro, com uma certeza que lhe era rara:

Aquela residente não era comum. E isso, para o bem ou para o mal, mudaria tudo.

Capítulos
Capítulos

Atualizado até capítulo 52

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!