Código Vermelho

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Primeiro Pulso

O som do despertador cortou o silêncio como uma sirene de emergência. Isadora Monteiro se levantou no mesmo segundo em que a primeira vibração do celular tocou a madeira da cabeceira. Há anos, ela não precisava de mais de um toque para acordar. Hábito de quem aprende a dormir com um olho aberto e o outro revisando diagnósticos.

O sol ainda não tinha aparecido por completo, mas o café já estava pronto. Forte. Quase amargo. Igual à rotina que escolhera para si.

Ela morava sozinha num pequeno apartamento de dois cômodos, no subúrbio da cidade. Aluguel barato, paredes descascadas e um gotejar constante na pia da cozinha. Mas era seu. Conseguido com o dinheiro contado de plantões noturnos, monitorias mal pagas e bolsas acadêmicas que mal cobriam o transporte.

Cada centavo que economizou foi para isso: estar ali, naquele momento, prestes a começar sua residência médica em cirurgia geral — no hospital mais renomado e mais temido da cidade.

O Hospital Santa Beatriz. Ou, como os internos chamavam, “Inferno com ar-condicionado.”

Antes de colocar o jaleco, Isadora respirou fundo. Tocou o bolso interno da mochila, onde guardava uma foto antiga: ela ainda adolescente, segurando a mão do pai em um leito de hospital. Aquela foi a última vez que o viu com vida.

Ele tinha sido negligenciado. Uma emergência ignorada. Um erro que custou mais do que qualquer diploma poderia pagar.

Desde aquele dia, ela prometeu: ninguém mais morreria por descaso enquanto ela estivesse por perto.

Mas promessas não são fáceis de cumprir quando o mundo exige que você seja mais do que boa. Você precisa ser impecável. Inabalável. Especialmente se for mulher, vinda de escola pública, com bolsa integral, e sem sobrenome conhecido para abrir portas nos bastidores da medicina.

Durante os seis anos de faculdade, Isadora foi aquela que sempre chegava primeiro, que ficava depois da aula, que corrigia os próprios erros até a exaustão. Carregava livros velhos, ouvia gravações de aula no ônibus lotado, decorava protocolos entre uma marmita e outra.

Ela não tinha tempo para festas, relacionamentos ou dramas. O único drama permitido era o clínico — e, ainda assim, com diagnóstico diferencial.

— Vai ser só mais um começo, Isadora. — disse a si mesma no espelho, ajustando o coque nos cabelos castanhos escuros.

O jaleco ainda estava limpo. Branco demais. Como um aviso de que tudo ali dentro podia manchar — a reputação, a alma, o coração.

Antes de sair, pegou um pequeno chaveiro preso à mochila: um bisturi de plástico, presente de formatura dado por uma amiga que largou a medicina no terceiro ano. “Pra te lembrar que você nasceu pra cortar o que não te serve”, ela tinha dito.

Na entrada do hospital, a recepcionista nem olhou em sua direção. Mais um rosto ansioso entre tantos. Mas, para Isadora, aquele instante era o culminar de tudo: de noites insones, dores silenciosas, e uma coragem que ninguém aplaudia.

O crachá pendia no pescoço como um aviso: Dra. Isadora Monteiro – Residente R1.

Ela não sabia ainda que ali dentro encontraria seu maior desafio. Não em cirurgias, nem em emergências, mas em alguém que desafiaria tudo o que ela acreditava ser certo.

Mas naquele momento, ela só pensava em sobreviver ao primeiro turno.

E talvez… em provar para si mesma que havia chegado onde prometeu estar.

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Comments

Ana Maria Rodrigues

Ana Maria Rodrigues

já gostei do começo pelo jeito promete

2025-06-13

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Atualizado até capítulo 52

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