Primeira Incisão

O hospital parecia mais frio por dentro do que por fora. As paredes cinza-claras refletiam o brilho pálido das luzes fluorescentes, e o som constante de monitores cardíacos se misturava aos passos apressados de profissionais que pareciam nascer sabendo onde ir.

Isadora ajeitou o jaleco e escondeu a ansiedade atrás do crachá. Era o primeiro dia oficial da residência, e o peso da responsabilidade pressionava seus ombros como um bisturi afiado e invisível.

— Bom dia. Dra. Monteiro, certo? — A voz vinha de uma supervisora que mal ergueu os olhos da prancheta. — Você foi designada para o plantão da ala C, emergência clínica. É lá que as almas penadas começam.

Isadora sorriu, mesmo sem saber se aquilo era uma piada ou uma sentença.

— Obrigada — respondeu, com a gentileza que sempre lhe foi instintiva, mesmo quando o ambiente parecia não merecer.

Ao entrar na ala, o cheiro de desinfetante se misturava ao de sangue seco e medo. Havia pacientes em macas improvisadas nos corredores, pedidos de exames atrasados, familiares desesperados. Uma médica veterana a olhou de cima a baixo antes de entregar uma pilha de fichas.

— Se você aguentar aqui, aguenta qualquer lugar — disse. — Se não desmaiar no primeiro procedimento, já é lucro.

Isadora não desmaiou.

Ela observava tudo. Cada alteração sutil nos olhos de um paciente, cada tremor involuntário nas mãos de um idoso, cada respiração que parecia falhar antes de ser ouvida pelo estetoscópio. Ela não era rápida, mas era certeira. E nunca — nunca — deixava de olhar nos olhos dos pacientes. Tratava cada um como se fossem únicos, mesmo quando o tempo apertava.

Durante a manhã, teve que lidar com uma criança em crise asmática, um rapaz com fratura exposta e uma senhora que jurava estar morrendo, mas só precisava ser ouvida. Em todos os casos, ela não gritou, não tremeu, não fugiu. Respirou fundo, lembrou dos livros, mas, principalmente, leu as pessoas.

À tarde, uma colega residente — Amanda — sentou ao lado dela no refeitório, visivelmente exausta.

— Você ouviu que o Dr. Leonardo está de volta? — perguntou, em tom de alerta, como quem anuncia uma tempestade.

— Não conheço. Ele é o chefe de cirurgia, né?

Amanda soltou um riso curto.

— “Chefe de cirurgia” é só o título. Ele é o verdadeiro deus aqui dentro. Faz procedimentos que ninguém mais ousa. Já reverteu morte cerebral em dois pacientes. Dizem que fez uma toracotomia às cegas, sem tempo de preparo, e o paciente saiu andando depois. Um monstro em campo. Genial. Assustador.

Isadora ergueu uma sobrancelha, intrigada.

— E arrogante também?

— O pacote completo. Exigente ao ponto da humilhação. Não tolera erro. Ele enxerga antes de você pensar. É tipo um radar humano. Um olhar dele pode te cortar mais fundo que um bisturi. Dizem que ele já fez residentes chorarem só com uma pergunta.

Isadora permaneceu em silêncio por alguns segundos. Aquela descrição a incomodava. Não o talento — isso ela respeitava. Mas a frieza. A ideia de que empatia era descartável quando se tinha genialidade.

— Mas, enfim — continuou Amanda —, ele não deve cruzar seu caminho tão cedo. Só pega os casos grandes. Neurocirurgia, trauma torácico, transplantes. A elite da elite.

Isadora não respondeu. Mas algo ali já estava se formando como semente. Ela não queria apenas sobreviver. Queria estar entre os melhores — não por status, mas para ser capaz de salvar quem os outros não podiam.

À noite, exausta, ela se sentou sozinha em um canto do vestiário. Tirou o jaleco manchado de sangue e suor e olhou para o reflexo no espelho. Estava diferente. Cansada. Mas firme.

Sabia que a teoria não preparava ninguém para ver a vida esvaindo por uma veia aberta ou para ouvir uma mãe gritar de dor na porta da sala de reanimação. Mas também sabia que cada segundo ali dentro era uma chance de crescer — e que seu lugar era exatamente ali.

Ao sair do hospital, a chuva começava a cair. No estacionamento, ouviu dois enfermeiros conversando.

— O Dr. Leonardo vai assumir o novo programa de emergência. Parece que o hospital vai testar um protocolo novo em parceria com o governo.

— Coitados dos residentes que forem parar na mão dele — respondeu o outro, rindo com nervosismo.

Isadora não sabia, mas aquele programa… já tinha o nome dela na lista de escolhidos.

E, mais cedo do que imaginava, ela descobriria que genialidade e arrogância podem caminhar juntas — e que, às vezes, a verdadeira cirurgia acontece dentro da alma.

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Comments

Angelica Araujo

Angelica Araujo

já sinto cheiro de amor e ódio /Shhh/

2025-07-10

1

Ana Maria Rodrigues

Ana Maria Rodrigues

Isa vai dobrar o Dr

2025-06-13

3

Ver todos
Capítulos
1 Primeiro Pulso
2 Primeira Incisão
3 A Seleção
4 A jovem residente
5 Cortes Invisíveis
6 Linhas de Corte
7 Expectativas e Cortes Frios
8 No Centro da Tempestade
9 Sorte ou Talento?
10 Na Mesa com o Santoro
11 Linhas Tênues
12 A Escolha Certa
13 Silêncios que Dizem Muito
14 Pressão no Centro Cirúrgico
15 A Escolha Certa
16 No Olho do Caos
17 O que os olhos não dizem
18 A ferida aberta
19 Reconstruir em silêncio
20 Pulso e Impulso
21 Entre Cores e Silêncios
22 Silêncios em Movimento
23 Entre Linhas e Silêncios
24 Sob Pressão
25 Sob a Pele
26 Silêncios que gritam
27 O preço de ser a melhor
28 Incontrolável
29 Fogo em Silêncio
30 Eu Não Quero Que Você Esqueça
31 Aquilo Que Não Se Pode Fingir
32 Aquilo Que Ferve em Silêncio
33 Entre Luzes e Segredos
34 Disfarces mal encenados
35 Sob Olhos que Julgam
36 verdades distorcidas
37 Entre verdades e consequências
38 Vozes que ecoam
39 Quando a verdade encontra o silêncio
40 Onde a dor encontra o amor
41 Linha tênue entre a vida e o fim
42 Esperar por você
43 Volta pra mim
44 Um passo de cada vez
45 Ela continua sendo ela
46 Ainda mais forte
47 De volta ao jogo
48 A primeira cirurgia solo
49 vamos comemorar
50 Bangalô Romântico
51 Depois do Paraíso
52 Passado insistente
53 Limites Invisíveis
54 O Fim de Um Ciclo, O Início de Um Destino
55 A Batalha Começa com um Nome no Jaleco
56 No Topo da Linha de Frente
57 Código Vermelho no Coração
58 A Noite em Que o Mundo Parou
59 Terraço, promessas e planos
60 A ALA MONTEIRO
61 O Grande Dia
62 Uma Lua, Dois Corações
63 Pulso Duplo
64 A Batida Mais Bonita
65 Pulso Duplo: Para Sempre
Capítulos

Atualizado até capítulo 65

1
Primeiro Pulso
2
Primeira Incisão
3
A Seleção
4
A jovem residente
5
Cortes Invisíveis
6
Linhas de Corte
7
Expectativas e Cortes Frios
8
No Centro da Tempestade
9
Sorte ou Talento?
10
Na Mesa com o Santoro
11
Linhas Tênues
12
A Escolha Certa
13
Silêncios que Dizem Muito
14
Pressão no Centro Cirúrgico
15
A Escolha Certa
16
No Olho do Caos
17
O que os olhos não dizem
18
A ferida aberta
19
Reconstruir em silêncio
20
Pulso e Impulso
21
Entre Cores e Silêncios
22
Silêncios em Movimento
23
Entre Linhas e Silêncios
24
Sob Pressão
25
Sob a Pele
26
Silêncios que gritam
27
O preço de ser a melhor
28
Incontrolável
29
Fogo em Silêncio
30
Eu Não Quero Que Você Esqueça
31
Aquilo Que Não Se Pode Fingir
32
Aquilo Que Ferve em Silêncio
33
Entre Luzes e Segredos
34
Disfarces mal encenados
35
Sob Olhos que Julgam
36
verdades distorcidas
37
Entre verdades e consequências
38
Vozes que ecoam
39
Quando a verdade encontra o silêncio
40
Onde a dor encontra o amor
41
Linha tênue entre a vida e o fim
42
Esperar por você
43
Volta pra mim
44
Um passo de cada vez
45
Ela continua sendo ela
46
Ainda mais forte
47
De volta ao jogo
48
A primeira cirurgia solo
49
vamos comemorar
50
Bangalô Romântico
51
Depois do Paraíso
52
Passado insistente
53
Limites Invisíveis
54
O Fim de Um Ciclo, O Início de Um Destino
55
A Batalha Começa com um Nome no Jaleco
56
No Topo da Linha de Frente
57
Código Vermelho no Coração
58
A Noite em Que o Mundo Parou
59
Terraço, promessas e planos
60
A ALA MONTEIRO
61
O Grande Dia
62
Uma Lua, Dois Corações
63
Pulso Duplo
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A Batida Mais Bonita
65
Pulso Duplo: Para Sempre

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