Capítulo 1 - O GUARDIÃO DESPERTO

O silêncio era absoluto. Sentado no chão da casa que construí com minhas próprias mãos, mantinha-me imóvel, em minha forma humana, concentrado, deixando-me alinhar ao fluxo natural da montanha. A estrutura ao meu redor era simples – feita de bambu e barro, cuidadosamente moldada ao longo dos anos para resistir às intempéries e proporcionar abrigo. Nada extravagante, apenas o necessário para uma existência tranquila e reclusa.

Essa montanha era meu lar, e eu, seu guardião. Aqui, no topo do mundo, encontrei uma paz que milênios de cultivo de poder jamais puderam me oferecer.

Minha respiração desacelerou enquanto mergulhava mais fundo na meditação. Cada fibra do meu ser estava conectada à energia ao meu redor - o vento que sussurrava entre as árvores, o calor do sol nas primeiras horas do dia, o murmúrio distante de uma cachoeira ao pé da montanha. Este era o meu refúgio e nada ousava perturbá-lo.

Até que algo ousou.

De repente, senti uma presença interromper o fluxo harmônico que eu mantinha há anos. Meus olhos se abriram de imediato, brilhando intensamente. Levantei-me em um único movimento, permitindo que minha energia se expandisse pela montanha como uma rede invisível.

"Alguém atravessou as barreiras", pensei, enquanto sondava o ambiente com atenção. Era uma presença fraca, mas o suficiente para despertar minha curiosidade e meu alerta.

Saí de casa, descendo a trilha que levava ao coração da floresta densa, mais abaixo. O vento carregava o aroma fresco de terra e folhas, mas havia algo mais, algo estranho. A névoa se agitava como se tentasse revelar o caminho.

A cada passo, eu me preparava para um confronto. Por anos, histórias sobre mim circularam nas vilas próximas. Alguns diziam que eu era um espírito protetor, uma entidade que abençoava aqueles que faziam oferendas. Outras me chamavam de demônio vingativo, um guardião implacável. Não me importava o que pensavam. Meu único objetivo era preservar o equilíbrio desse lugar.

Finalmente, alcancei o limite da floresta, onde a presença se tornou clara.

Entre as árvores antigas, junto às raízes de um grande carvalho, algo pequeno chamou minha atenção: um cesto. Um som suave de choro flutuava no ar, interrompendo a quietude do ambiente.

Um cesto? Um bebê?

Aproximei-me com cuidado, os sentidos em alerta. Era improvável que alguém deixasse uma criança ali sem um propósito específico. Seria uma tentativa de invocar minha compaixão? Ou talvez algum tipo de maldição velada?

Parei, confuso, e observei a cena por um momento. Olhei ao redor, esperando por qualquer sinal de uma emboscada ou armadilha, mas não havia ninguém ali. Apenas o som do choro e o cesto, repousando serenamente sob a sombra do carvalho.

"Quem ousaria deixar uma criança aqui?"

O cesto era simples, mas bem-feito. Inclinei-me para olhar mais de perto. No interior, envolta em um pano gasto, estava uma menina pequena, com o rosto avermelhado pelo choro.

Algo em meu peito apertou.

“Cabelos platinados e olhos...

Verdes.”

Ela me olhou diretamente, o choro cessou. Por um instante, senti como se estivesse olhando para algo que conhecia, algo que fazia parte de mim. Era impossível, mas a conexão estava lá, palpável e inegável.

– Quem é você? – perguntei, minha voz quase um sussurro.

A menina não respondeu, obviamente, mas seus olhos me mantiveram preso. Era como se ela soubesse quem eu era.

"Seria possível que fosse... minha?"

Afastei o pensamento imediatamente, mas ele persistiu, inquietante. Peguei o cesto com cuidado, segurando com firmeza enquanto olhava ao redor mais uma vez. Nenhuma outra presença, nenhuma explicação para aquilo. Apenas o barulho do vento balançando as folhas.

– Muito bem, pequena. Vamos sair daqui.

Enquanto eu andava pela trilha sinuosa, meus passos ficaram mais lentos. Cada vez que olhava para o bebê, algo dentro de mim sussurrava que ela era, de fato, minha responsabilidade.

Suspirei profundamente.

- Poderia… talvez… deixá-la na porta de um dos aldeões na base da montanha. - Era a opção mais lógica, afinal, que conhecimento eu tinha sobre cuidar de bebês?

Ela fez um barulhinho suave, como se desaprovasse a ideia. Suspirei outra vez, balançando a cabeça. Mas algo em mim hesitava, por mais confuso que eu estivesse, não poderia simplesmente deixá-la.

— Certo, pequena, parece que... ficaremos juntos — declarei, resignado.

Com o cesto nos braços, voltei para o topo da montanha. A subida não me cansava – nada podia depois de tantos anos de cultivo –, mas minha mente estava cheia. Quem deixaria uma criança aqui? E por quê?

Ao chegar em casa, coloquei o cesto sobre a mesa improvisada no canto da sala.

Era uma cabana rústica e isolada, com vista para as montanhas. O interior era simples e funcional, feito apenas para mim. Não havia espaço para algo tão frágil e pequeno quanto uma criança. Livros antigos ocupavam as prateleiras, e minhas armas repousavam em suportes nas paredes. O fogo na lareira central estava apagado, e o ambiente era frio.

Olhei ao redor, pensando em como transformá-la num espaço adequado para um bebê. Tudo ali havia sido projetado para minha vida solitária: livros, armas, prateleiras altas, um local para minhas meditações... absolutamente nada era seguro ou apropriado para uma criança.

Enquanto tentava pensar em algo, ela começou a tremer e chorar levemente. Ao tocá-la, percebi que sua pele estava fria.

— Está com frio, não é? — perguntei, franzindo o cenho.

Concentrando-me, conjurei pequenas chamas azuis que flutuaram pelo ambiente, criando uma temperatura agradável. A pequena pareceu se aquecer, e por um breve momento, ela parou de chorar, e seu rostinho suavizou. Sorri, satisfeito.

— Viu? Problema resolvido...

No instante seguinte, ela começou a chorar novamente, mais alto desta vez, com um tom de urgência. Olhei, confuso.

— Mas... está calor? Está confortável... O que mais você quer criatura humana?

Comecei a listar mentalmente minhas opções. Com um leve estalar de dedos, conjurei uma bandeja com alguns petiscos. Peguei um peixe fresco e aproximei dela.

— Que tal um peixe bem fresquinho? Aposto que isso vai resolver tudo. — sugeri, oferecendo o peixe diretamente no rostinho dela.

Ela fez uma careta e recusou, o choro aumentou mais.

— Não gostou do peixe, hein? Que tal... — pausei, olhando ao redor até encontrar um pequeno rato que eu havia capturado dias antes. Peguei-o e o estendi para ela. — Este é um rato suculento. Vai te deixar forte.

O choro ficou ainda mais alto, e ela rejeitou completamente meu "banquete". Balancei a cabeça, perplexo.

"Peixes, ratos... tudo que eu comeria está aqui!" pensei, sem saber o que faltava.

Tentei outras opções: alguns pedaços de fruta, carne seca, até mesmo uma raiz que mastigava em viagens longas. Nada a satisfazia. Foi só então que algo me veio à mente — lembranças das vilas que visitei, onde vi mães cuidando de seus filhos. Recordei que bebês costumavam beber... leite! Suspirei, resignado. Era óbvio.

— Certo, você venceu, pequena. Vou achar algo mais apropriado.

Desci a montanha outra vez, vasculhando as redondezas até encontrar uma cabra selvagem pastando. Com paciência, consegui extrair o leite e o trouxe para a bebê. Ao olhar para a tigela cheia, percebi o óbvio: tigelas não eram práticas para bebês.

— Preciso de alguma coisa para... — murmurei, revirando os olhos ao encontrar uma garrafa. Improvisando, criei uma mamadeira.

Segurei a pequena nos braços e ofereci o leite. Ela parou de chorar e começou a mamar com uma expressão satisfeita, finalmente relaxando. Sorri, aliviado.

— Ah, então era isso! Muito exigente para alguém tão pequena, não acha?

Ela me olhou com olhos curiosos, como se estivesse me entendendo. 

Após a árdua batalha de descobrir como alimentar a criança, eu suspirei, convencido de que os problemas tinham terminado. Talvez, afinal, eu fosse capaz de cuidar desse pequeno ser. Mas então, ela soltou um arroto suave.

— Espera... agora precisa arrotar também?

Segurei-a com cuidado, dando leves batidinhas nas costas até que um arroto ecoasse. Senti um orgulho estranho daquilo, mas o momento de satisfação durou pouco. Um cheiro peculiar encheu o ar, me fazendo franzir o rosto.

— Deuses... o que foi isso? — murmurei, pensando que algum animal selvagem tivesse invadido meu território. Mas então percebi que o cheiro vinha da minha nova protegida.

Eu hesitei e, aos poucos, a realidade do que precisava fazer começou a se formar em minha mente.

 — Você precisa... de uma troca de fralda.

Me levantei e a afastei um pouco de mim. Em todos os meus milênios de existência, jamais havia imaginado que enfrentaria um desafio como esse.

Com um suspiro resignado, puxei a fralda improvisada e dei uma olhadinha dentro. O cheiro me atingiu como uma pancada.

- Pelas escamas ancestrais! Isso é indescritível! - resmunguei segurando o nariz.

Logo percebi meu erro quando um pouco de conteúdo da fralda suja acabou na minha mão. Olhei para aquilo como se acabasse de ser traído pelo próprio destino.

Após alguns segundos de puro horror, improvisei uma troca usando alguns panos e a lavei com água fresca. O processo foi tudo menos gracioso, e quando finalmente terminei, ela fez um som de satisfação, fechando os olhos como se estivesse prestes a dormir. Admirei o pequeno caos que havia se tornado meu dia.

Olhei para aquele… quase muquifo, percebendo que não havia nem um lugar para ela descansar. Tudo era frio, improvisado e, acima de tudo, perigoso. Ainda assim, não tinha alternativa.

— Bom... acho que vai ter que dormir comigo — murmurei, carregando-a para minha cama.

Deitei-me ao lado dela, observando enquanto a pequena se aconchegava em mim, tranquila, como se aquele fosse o único lugar no mundo onde ela queria estar.  Exausto, suspirei, mas em paz, pelo menos por um instante.

— Bebês são extremamente trabalhosos — pensei, olhando para o teto da cabana. — Isso não faz sentido... Por que alguém me deixaria isso? — Fiz uma pausa, considerando minhas opções mais uma vez. — Talvez eu devesse... me livrar de você enquanto ainda posso. Não é tarde demais.

Ela fez um barulhinho suave, como se protestasse mesmo dormindo. Mas a dúvida continuava crescendo em minha mente. Peguei a pequena com cuidado e me concentrei, permitindo que meu poder investigasse profundamente o núcleo dela. Se ela fosse apenas uma criança comum, então minha decisão seria fácil.

O que encontrei, porém, me deixou sem palavras.

— Isso... não pode ser verdade — murmurei, sentindo uma onda de choque percorrer meu corpo. O núcleo dela não apenas carregava energia semelhante à minha, mas era inconfundivelmente meu. Ela compartilhava a mesma essência, como se fosse parte de mim. Uma onda de confusão e incredulidade tomou conta de mim enquanto eu olhava para o pequeno rosto tranquilo.

— Você é realmente minha... — sussurrei, um misto de fascinação e dúvida tomando conta de mim. — Mas... como isso é possível? Com quem? Quando?

De repente, uma memória nebulosa emergiu em minha mente: uma noite há muito tempo, uma das muitas noites que passei em vilas humanas, bebendo até perder a noção das coisas. Meu coração acelerou com a possibilidade.

— Foi naquela noite…? — as peças começaram a se encaixar. — Eu bebi demais... e... — fiz uma pausa, olhando para a pequena nos meus braços. — Alguém engravidou e então achou que a melhor solução seria me deixar com a criança? O demônio da montanha... claro. Era mais fácil se livrar de você assim, não é? — Sorri com ironia, balançando a cabeça. — Mas por destino, você acabou em minhas mãos.

Olhei novamente para ela, que agora parecia tão tranquila, tão inocente. Uma parte de mim ainda queria duvidar, mas a conexão era inegável. Ela era minha. Minha filha.

— Parece que não tenho escolha agora, não é? — murmurei, um sorriso exausto, mas genuíno, se formando em meus lábios. — Se o destino decidiu assim, pequena, então eu aceitarei.

A partir daquele momento, percebi que minha vida não seria mais a mesma. A rotina tranquila e meditativa que eu mantinha há séculos seria substituída por algo completamente diferente. Dias imprevisíveis, noites interrompidas... e, de alguma forma, um propósito que eu nunca soube que precisava. 

Enquanto cuidava dela, descobri algo que jamais imaginei: a alegria de não estar mais sozinho.

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Gelcinete J. Rebouças

Gelcinete J. Rebouças

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2025-06-18

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