Bons filhos

Eleanor

Já fazia um mês desde que voltei da viagem trinta dias em que minha vida parecia em suspenso, trinta dias desde aquela noite. A rotina era sempre a mesma, acordava, ajudava nas tarefas de casa, fingia estar bem, fingia ser a filha perfeita, tudo enquanto buscava, secretamente, formas de conseguir um emprego e um pouco de independência, Amanda e Caleb insistiam em me procurar, mensagens, ligações, recados dados por terceiros eu ignorava todos. Eles não mereciam mais nenhum segundo da minha atenção, mas era difícil manter essa fortaleza por muito tempo e tudo desabou naquela noite, durante o jantar.

Estávamos sentados à mesa: eu, minha mãe, meu pai silêncio, como sempre. Até que...

— Caleb está cada vez mais distante, Eleanor — minha mãe comentou, cortando a carne no prato como se falasse sobre o tempo.

— Nos cultos ele mal te olha — completou meu pai, sem tirar os olhos do copo.

Eu sabia que uma hora viria, respirei fundo e falei.

— Eu quero cancelar o noivado.

O silêncio que se seguiu foi tão pesado que eu quase pude ouvir o som da minha coragem se espatifando no chão.

— Como é que é? — minha mãe perguntou, largando os talheres.

— Eu não quero me casar com ele. Nunca quis, na verdade só aceitei porque vocês queriam.

Meu pai me encarou.

— E por que exatamente essa decisão agora?

Abri a bolsa ao lado da cadeira, tirei o celular.

Mostrei fotos vídeos, provas Caleb e Amanda beijando rindo de mãos dadas e tudo mais

Noite após noite a minha mãe olhou depois olhou pro meu pai. Ficaram em silêncio por um tempo, esperando que eu recuasse que eu voltasse atrás que dissesse que era uma brincadeira.

Mas eu continuei firme.

— Ele não quer esse casamento. E eu também não. Não tem por que manter essa farsa.

Minha mãe respirou fundo, com raiva.

— Você acha que manda no seu nariz agora?

— Esse noivado não vai ser cancelado — meu pai disse, batendo o punho na mesa. — Isso é só uma fase. Você precisa orar, fazer uma campanha, Deus transforma, mas precisa ser temente e você nunca orou o suficiente.

— A culpa é sua, Eleanor — minha mãe continuou, com o dedo apontado. — Você se afastou da presença de Deus. Isso é consequência.

Minha garganta fechou.

— Vocês estão cegos! — explodi, levantando da cadeira. — Estão vendo a verdade e preferem fingir que tá tudo bem. Eu não vou me casar com um traidor, não importa quantos cultos vocês me obriguem a frequentar!

— Cala essa boca agora! — minha mãe gritou.

— Eu não vou calar!

— Cala a boca! — ela repetiu, levantando-se num pulo.

O tapa veio seco doeu mais pela surpresa do que pela força, fiquei estática por um segundo, com a mão no rosto.

— Eu não vou me casar com ele — repeti, trêmula. — Nem por vocês nem por Deus nem por ninguém.

Tentei sair da sala, mas meu pai já vinha atrás de mim, os gritos ecoaram as mãos pesadas, a surra não foi a primeira mas doeu como se fosse. Quando consegui me arrastar pro quarto, me encolhi no chão, entre a cama e a parede chorava em silêncio tão fundo que parecia que estava engolindo a própria alma eles achavam que me quebrariam com aquilo mas mal sabiam o que crescia dentro de mim não era só dor era fogo era uma nova Eleanor mais forte mais livre e mais perigosa do que eles poderiam imaginar.

A madrugada estava silenciosa, eu ainda estava encolhida no chão do quarto, debaixo do cobertor que puxei da cama, tentando acalmar o corpo que ainda ardia em dor, as lágrimas tinham secado, mas a vergonha e a revolta ainda queimavam por dentro foi quando a maçaneta girou lentamente a minha mãe entrou sem bater como sempre fazia, vestida com aquele robe florido que ela usava desde que me entendo por gente, carregava consigo a mesma expressão de calma forçada que exibia toda vez que queria me "consertar".

Ela se sentou ao meu lado na cama sem dizer nada por alguns segundos depois começou, como sempre começava:

— “Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor, pois isto é justo.”

Sua voz era baixa, como se quisesse ser doce.

— “Honra teu pai e tua mãe... para que te vá bem, e sejas de longa vida sobre a terra.”

Fechei os olhos com força.

Ela pousou a mão na minha cabeça, acariciando meus cabelos como se eu ainda tivesse cinco anos.

— Filha… casamento não é fácil, nunca foi.

Suspirou.

— Eu e seu pai também tivemos problemas, sabia? Mas veja ficamos juntos.

Fez uma pausa, buscando meus olhos.

— Porque é isso que Deus espera de nós. Que sejamos fiéis que sigamos os caminhos certos. Somos seus pais, Eleanor nunca faríamos nada para te machucar.

Meus punhos se fecharam em silêncio se ela soubesse...

— Você acha que fugir vai resolver? — continuou ela. — O mundo lá fora é cruel com moças como você lá fora, ninguém vai te proteger aqui, ao menos, você tem a orientação do Senhor da família de um bom marido.

"Bom marido."

Engoli em seco. Ela ajeitou o robe no colo o silêncio voltou… mas só por alguns segundos.

— A sua menstruação já veio esse mês?

Meu coração parou por um instante.

— O quê? — perguntei automaticamente, tentando ganhar tempo.

— Você não pediu absorventes. E eu sei quando você precisa, sempre pede. — Ela me lançou um olhar sério. — Veio ou não?

Eu me obriguei a responder.

— Já veio, sim… mas foi pouco e eu ainda tinha absorvente guardado, por isso não pedi.

Ela me observou por um momento como se quisesse captar uma mentira escondida entre as palavras.

— Hum… vamos marcar um check-up médico nos próximos dias antes do casamento só por precaução está bem?

Assenti, tentando não parecer nervosa.

Ela se levantou, alisou os cabelos e saiu, deixando o quarto no mesmo silêncio abafado de antes. Mas agora o silêncio não era mais o problema, agora, o pânico tinha invadido todos os cantos do meu corpo, a minha menstruação ainda não tinha vindo eu não tomei a pílula, não usamos camisinha a tontura me atingiu como uma onda gelada e o pior de tudo eu não fazia ideia do nome dele não sabia quem ele era, de onde vinha, se era confiável, se estava na cidade ou se morava a mil quilômetros de distância.

O rosto dele era um borrão talvez pela bebida, talvez pela adrenalina tudo que me lembrava era do corpo do calor da pele dele contra a minha das mãos grandes do jeito que ele sussurrava no meu ouvido do gosto dos beijos nada além disso nada que me ajudasse agora me joguei de volta na cama e enterrei o rosto no travesseiro e se eu estivesse grávida o meu mundo, que já estava de cabeça pra baixo, ia virar poeira.

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Comments

Carmilurdes Gadelha

Carmilurdes Gadelha

Agora eles vão surtar totalmente

2025-06-07

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