1.1

“Alguns encontros parecem acidentais. Até que você entende: não eram.”

......................

Cattleya Zarephine

O despertador tocou às cinco da manhã.

Eu já estava acordada.

Não porque tivesse dormido cedo ou o suficiente, mas porque o sono, ultimamente, era um luxo que minha mente não podia bancar. A lembrança dos meus pais em camas de hospital, os olhos apagados da minha mãe e a voz rouca do meu pai no último telefonema… tudo aquilo se repetia em looping assim que eu fechava os olhos.

Levantei devagar. O quarto apertado que eu alugava em Roma mais parecia um armário com janelas. A água do chuveiro era fria demais, o café instantâneo estava ralo e o ônibus lotado. Ainda assim, agradeci em silêncio por cada pequeno desconforto.

Significava que eles ainda estavam vivos.

E isso era o bastante para mim.

O supermercado abria às sete. Eu estava lá às seis e vinte, como sempre. Calcei as luvas, amarrei o avental, e comecei a carregar caixas como quem carrega promessas. Se eu não quebrasse, eles também não quebravam.

CATTLEYA ZAREPHINE — ¡Vamos, Cattleya! — murmurei pra mim mesma, em espanhol.

Era assim que eu me lembrava de quem eu era. Uma colombiana teimosa com a alma calejada.

“Acasos não existem. Só caminhos que fingem ser acidentes.”

O turno já tinha começado há duas horas e minhas costas doíam como se eu carregasse o mundo inteiro em cima delas. Talvez porque, de certa forma… eu carregava.

Empilhar caixas, repor estoque, fingir que estava tudo bem — virou rotina. Não havia espaço para fraqueza, nem tempo para saudade. Meus pais dependiam daquele emprego. Dependiam de mim. E eu... dependia de não desabar.

No meio da terceira reposição de enlatados trombei com alguém forte. O impacto me fez perder o equilíbrio e várias latas despencaram no chão, rolando entre nossos pés.

CATTLEYA ZAREPHINE — Ai! Desculpa, senhor — falei, já me abaixando, sem nem olhar direito pra cara do homem.

Mas quando levantei os olhos... tudo parou.

Ele era alto, imponente. Olhos escuros como a noite, um rosto que parecia esculpido na fúria e no gelo. E ainda assim, alguma coisa ali me puxava — como se houvesse fogo escondido sob todo aquele mármore.

Ele não disse nada. Só ficou me encarando.

E, por um instante, senti como se ele me visse inteira.

Não só a moça que repõe latas.

Mas a mulher cansada, perdida, tentando manter o mundo de pé.

......................

Viktor Vasiliev.

Acordei sem despertador. Sempre acordo antes do sol.

Pesadelos não têm hora marcada.

A diferença entre um sonho e uma lembrança é que um termina. O outro vive com você, grudado na carne. Charlie Vasiliev não aparece mais nos meus dias — mas nos meus sonhos, ele nunca foi embora.

Vesti a camisa preta, a jaqueta escura e os pensamentos mais escuros ainda. Andei sem rumo até parar em um supermercado qualquer.

Assim que entro no supermercado, o cara do caixa me encara como se eu tivesse roubado a porra da padaria inteira.

Olhar torto, nariz empinado.

A sorte dele é que hoje eu tô calmo.

Mas se fosse outro dia...

Meteria uma bala entre os olhos só pra ele aprender a não brincar com quem ele não conhece.

Ignoro. Sigo em frente.

Vou direto pra sessão de enlatados — porque é a única coisa que não exige conversa.

Mas então acontece.

Um corpo pequeno, apressado, bate de frente comigo. Latas caem, rolando no chão como se anunciassem o caos que acabou de começar. Ela se abaixa rápido, pedindo desculpa, com a voz baixa, quase sem fôlego.

Mas quando levanta os olhos…

Caralho.

O mundo para.

Tudo some.

Ela é simplesmente… inacreditável.

A mulher mais linda que eu já vi na vida.

E eu já vi de tudo.

Mas não é só a beleza. É o olhar.

Aquele olhar... quebrado. Cansado.

Carrega dor, como quem aprendeu a sorrir com os dentes e chorar com os olhos.

Quero saber o que aconteceu com ela.

Por que carrega tanta sombra.

Mas que merda eu tô pensando?

Eu nem conheço essa mulher.

Me abaixo, ajudo a pegar as latas. Nossos dedos se tocam — e vem uma sensação esquisita.

Como se tivesse vida demais nesse toque pra um cara como eu.

Quando a gente se levanta, olho pra ela de novo. Ela me encara de volta.

Linda. De um jeito que quase dói.

Dou uma olhada no crachá.

Cattleya.

Claro que seria um nome bonito pra caralho.

Bonito como ela.

Forte como ela parece ser.

E eu?

Eu tô aqui. Um completo estranho.

Mas, por algum motivo...

Não quero mais ser só isso.

.....................

Cattleya Zarephine.

Ele parecia uma parede.

Dessas que você não vê até bater de frente.

Mas não era só o corpo grande ou o jeito intimidador. Era... tudo.

Eu estava acostumada a ser invisível. Aqui, todo mundo passa por mim como se eu fosse só parte da mobília do mercado.

Mas ele não.

Ele me olhou como se eu tivesse cor.

Como se eu tivesse peso.

E isso me assustou.

CATTLEYA ZAREPHINE — Me desculpa, foi sem querer — murmurei, abaixando rápido, tentando sumir.

Mas quando nossos dedos se tocaram ao mesmo tempo na mesma lata…

senti.

Como um choque leve. Um calor estranho.

Levantei os olhos.

E ele estava me encarando.

Não era um olhar sujo. Nem invasivo.

Era profundo.

Como se tentasse decifrar o que eu mesma tinha enterrado.

Meu coração acelerou. Meus joelhos fraquejaram um pouco.

Eu não podia me distrair. Não agora. Não com homem nenhum.

Mas ali estava ele.

Olhos de aço. Silêncio bruto.

E por um instante...

Quis que ele perguntasse meu nome.

Mesmo estando estampado no meu crachá.

......................

Viktor Vasiliev.

Ela termina de recolher as últimas latas, mas ainda parece nervosa. O olhar abaixado, a respiração curta.

Ela tenta sair dali o mais rápido possível, como se eu fosse um perigo.

Talvez eu seja.

Mas, pela primeira vez em muito tempo, não quero que pense isso.

VIKTOR VASILIEV — Ei… — falo, sem pensar. A voz sai mais grave do que eu queria.

Ela para. Vira o rosto devagar. Os olhos me encaram de novo, e eu quase esqueço o que ia dizer.

Caralho, foca, Vasiliev.

VIKTOR VASILIEV — Tá tudo bem com você?

Ela pisca, surpresa. Claramente não esperava que eu dissesse nada. Muito menos… aquilo.

CATTLEYA ZAREPHINE — Tô sim. Desculpa pelo esbarrão de antes — diz, com um leve sotaque que me faz querer ouvir mais.

Silêncio. Eu odeio silêncio.

Mas odeio mais a ideia de ir embora e nunca mais ouvir essa voz.

VIKTOR VASILIEV — Cattleya, né? — aponto pro crachá, tentando parecer casual, mas sei que tô parecendo um idiota.

Ela assente, desconfiada.

VIKTOR VASILIEV — Nome bonito. Diferente.

Como você, penso, mas não falo.

Ela sorri de leve, quase sem querer. E porra, aquele sorriso…

CATTLEYA ZAREPHINE — Obrigada… — diz ela, e volta a desviar o olhar.

Ela já vai virar, voltar pro trabalho, se esconder entre prateleiras e fardos de arroz.

E se eu não falar mais nada, nunca mais vou ver esse sorriso.

Então arrisco.

VIKTOR VASILIEV — Tem uma cafeteria aqui perto. Serve um café decente. Se quiser… posso te pagar um, depois do expediente.

Ela me olha, surpresa de novo. Talvez um pouco assustada.

Ou talvez só cansada demais pra isso.

Merda. Fui direto demais.

VIKTOR VASILIEV — Só um café — completo, dando de ombros. — Nada demais. Conversa leve. Prometo não morder.

Mentira. Quero morder.

Mas sei segurar.

Ela parece pensar. Me analisa. E é como se estivesse tentando descobrir se eu sou perigo… ou abrigo.

Talvez eu seja os dois.

......................

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Comments

Arlete Fernandes

Arlete Fernandes

Autora adorando a estória muito empolgada até agora!

2025-09-22

0

Ray Da Luz

Ray Da Luz

tô gostando muito da história 😍

2025-09-23

0

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