Capítulo 5 – O Espelho da Terra

O som dos sinos ancestrais ecoava pelo vale como um chamado antigo, reverberando entre as montanhas como se acordasse os próprios ossos da terra. Eu descia os degraus do castelo envolta em um manto carmesim, presente de Thari naquela manhã cinzenta. O tecido de lã era espesso, pesado nos ombros, quase sufocante, como se carregasse o peso de todos os nomes esquecidos que corriam na minha linhagem.

A cada passo, o mundo parecia se afastar da realidade comum. A trilha de pedras serpenteava por entre árvores altíssimas de troncos escuros, cujas copas se entrelaçavam como dedos sobre nossas cabeças, escondendo o céu. A floresta sussurrava em línguas antigas. O vento era frio, mas não cortava — era espesso, úmido, quase tátil.

Kael caminhava ao meu lado, com a expressão fechada, o olhar varrendo a mata como um animal que pressente a aproximação do inimigo. Vários membros do clã nos acompanhavam a distância, encapuzados, calados. Seus olhos eram sombras sob os capuzes. Nenhum sorriso. Nenhum murmúrio.

Rompi o silêncio, a voz baixa, quase como se não quisesse despertar algo adormecido entre as árvores.

— O que exatamente é esse Espelho da Terra?

Kael não me olhou. Seu olhar permanecia fixo à frente.

— É um véu entre os mundos. Um lugar onde o espírito encontra a verdade — respondeu, a voz grave como trovão abafado. — E a mentira morre.

Aquilo me fez estremecer. Puxei o manto mais para perto do corpo.

— Isso é poético. E assustador.

— É. As duas coisas. — ele disse, enfim olhando para mim. — Como tudo o que importa.

Caminhamos por mais alguns minutos até a floresta se abrir subitamente em um círculo perfeito de pedra. Adiante, o penhasco se abria como uma ferida, revelando uma cratera profunda, no centro da qual havia um lago completamente imóvel. A água era escura como óleo antigo, espelhando o céu cinzento com uma nitidez sobrenatural.

Ali estava.

O Espelho da Terra.

Senti minhas pernas vacilarem. O ar ali era mais denso, como se o próprio tempo hesitasse em seguir. Thari se aproximou em silêncio e me estendeu uma adaga curta. A lâmina, feita de obsidiana¹ pura, parecia pulsar em minha mão, como se tivesse um coração próprio.

— Deve haver um sacrifício — ela disse, com solenidade. — O espelho só aceita a verdade banhada em sangue. O seu.

Hesitei. Olhei para Kael. Ele não disse nada, mas seus olhos dourados brilharam, suaves, e ele assentiu com um gesto contido.

Engoli em seco.

Ergui a lâmina e tracei um corte preciso no centro da palma esquerda. O sangue quente escorreu pelos dedos, pingando na superfície da água sem produzir sequer uma ondulação.

E então, tudo desabou.

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Quando abri os olhos, o céu era vermelho como carne exposta. O chão rachado se estendia em todas as direções, e montanhas partidas flutuavam no horizonte, como se um deus as tivesse partido ao meio com as próprias mãos. Corvos giravam em círculos acima de uma árvore retorcida, a única coisa viva naquele inferno silencioso.

Sob a árvore, uma figura esperava por mim.

Uma mulher.

E ela… era eu.

Ou melhor: era uma versão de mim. Uma sombra de carne e sangue e dor. Usava um vestido branco, mas ele estava coberto de manchas escuras, como se tivesse andado por um campo de mortos. Seus olhos eram abismos negros, vazios de qualquer emoção humana.

— Você veio tarde — disse ela, a voz baixa, como um sussurro empurrado pelo vento. — Eles já sabem. Sempre souberam.

— Quem é você? — perguntei, mesmo sabendo a resposta.

— Sou o que sobrou do que enterraram. A criança que viu demais. A que sangrou em silêncio. Sou você… se não lutar.

— Lutar contra o quê?

Ela ergueu o braço e apontou atrás de mim. Virei devagar.

E lá estava ele.

Kael.

Mas não Kael como eu o conhecia. Essa versão irradiava uma presença animalesca, insuportável. Seus olhos dourados ardiam como chamas líquidas. O corpo parecia maior, mais denso. A sombra que o envolvia era viva — uma criatura feita de fome e poder, com dentes grandes demais para um rosto humano. E ele sorria.

Não com afeto.

Com posse.

— Ele te ama — disse a mulher, com um tom pesaroso — mas isso não o torna menos perigoso.

— O que ele é?

Ela deu um passo à frente. Seu rosto agora estava próximo ao meu, tão próximo que senti o frio que emanava dela.

— A pergunta certa não é o que ele é… — sussurrou — mas o que ele te fará ser.

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Despertei com um sobressalto, arfando. Estava deitada à margem do Espelho, o céu já escurecendo acima. Kael segurava minha mão ensanguentada, o olhar preocupado.

— Você viu — ele disse, sem precisar perguntar.

Assenti, o corpo ainda trêmulo, a respiração irregular. Meus olhos se encontraram com os dele.

— Kael… o que é você?

Ele não respondeu de imediato. Seus olhos dourados não desviaram dos meus.

Mas havia algo neles agora.

Algo mais profundo que poder.

Algo parecido com culpa.

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