Naquela noite, não dormi.
Fiquei deitada, os olhos fixos nas sombras projetadas no teto de pedra, ouvindo o som distante dos lobos lá fora — uivos, passos, o farfalhar de algo grande rondando os limites da floresta.
A marca em meu ombro formigava, mesmo sem dor.
Kael não voltou depois de me deixar no quarto. Mas Thari voltou.
Ela entrou sem bater, como se ainda fosse dona daquele espaço.
— Vista isso — disse, jogando um tecido sobre a cama.
Era um vestido. Negro, simples, mas com detalhes prateados no colarinho e nas mangas — símbolos antigos, como os que eu vira nas tapeçarias. A bainha estava bordada com fios vermelhos. Sangue bordado à mão.
— Por quê?
— Porque o Conselho quer ver você. E recusar… não é uma opção.
Fui levada pelos corredores do castelo por dois homens silenciosos, altos como montanhas. Usavam máscaras de prata sobre o rosto e armaduras de couro escuro. Guardas do clã, segundo Thari.
As portas da câmara principal se abriram com um rangido que me gelou a espinha.
No centro do salão, havia um círculo de pedra. Dentro dele, sete tronos. Três ocupados.
Um homem velho, com olhos leitosos como névoa; uma mulher albina com a pele tão pálida quanto papel; e um garoto… não devia ter mais de quinze anos, mas o modo como olhava para mim era de quem já havia vivido séculos.
Kael estava de pé no centro, sozinho. Mas ao me ver, seus olhos — dourados, intensos — se suavizaram.
— Ana Clara dos homens — disse o velho. Sua voz parecia o vento soprando através de ruínas. — Trouxemos você aqui para que nos conte… o que lembra.
— Lembrar? — repeti. — Eu só me lembro de estar na minha clínica, e depois…
— Antes disso — interrompeu a mulher. — Da sua infância. De sonhos. De coisas que você viu… e ninguém acreditou.
A imagem veio como um soco. Uma memória antiga, esquecida. Tão vívida quanto um pesadelo.
— Uma vez, quando eu era criança… fugi da escola e me escondi em uma construção. Havia um cão lá dentro. Negro, enorme. Mas ele não me atacou. Deitou-se do meu lado e me deixou dormir encostada no pelo dele.
O garoto riu. Um riso seco, perigoso.
— Não era um cão — disse ele.
Kael se aproximou de mim.
— Eles acham que você é descendente da Linhagem Silenciosa. Os Sangue-Velho. Aqueles que foram marcados antes de nós. Antes dos clãs.
— Isso é ridículo — sussurrei.
Mas não era. Eu sabia que não era. Algo dentro de mim gritava que tudo aquilo fazia sentido — mesmo que meu cérebro negasse.
O velho se levantou com esforço.
— Se for verdade… então você é a chave. Aquela que unirá os ramos partidos. Ou os destruirá.
— E se não for verdade?
— Então morrerá como as outras.
Thari se moveu. Kael avançou, os olhos faiscando.
— Ninguém toca nela — disse ele, num tom que fez os guardas recuarem.
O velho sorriu, satisfeito.
— Então prove. Amanhã, sob a lua crescente, ela será levada ao Espelho da Terra. Se for digna, sobreviverá. Se não for… o sangue falará por si.
Fui levada de volta ao quarto. Mas não estava só.
Kael entrou minutos depois. Fechou a porta. Aproximou-se de mim sem pressa.
— Por que não me contou antes? — perguntei.
— Porque eu não sabia. Até ver sua marca, até sentir seu cheiro. Você é mais antiga do que qualquer sangue que já conheci, Ana Clara.
— E se eu não quiser esse destino?
Kael parou a centímetros do meu rosto.
— Então fuja. De verdade desta vez. Mas eu duvido que consiga.
— Porque vai me caçar?
— Porque… parte de você já quer ficar.
Fiquei em silêncio.
Porque ele tinha razão.
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Atualizado até capítulo 31
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