O som dos degraus rangendo era constante enquanto Ana subia para o segundo andar. Helena havia lhe dito que podia explorar à vontade — conhecer os cômodos, se sentir em casa.
Mas era impossível se sentir em casa em um lugar onde tudo parecia... vigiado.
As paredes tinham quadros antigos com rostos que não sorriam. Relógios que não funcionavam. Cortinas que balançavam mesmo sem vento. O corredor era longo demais, escuro demais, mesmo com janelas abertas. O silêncio era espesso, como se algo respirasse entre as paredes.
Ana passou por um espelho antigo, oval, com moldura de ferro escurecido. Parou diante dele por um instante.
Por um segundo, achou que seu reflexo não estivesse se movendo ao mesmo tempo.
Continuou.
Parou diante de uma porta entreaberta. Empurrou com cuidado e encontrou um quarto infantil coberto por tons de rosa e roxo. Bonecas antigas, de porcelana, alinhadas em uma prateleira observavam a porta como sentinelas. O ar ali era mais frio, mesmo com o sol da manhã filtrando-se pelas cortinas floridas.
Tereza estava sentada no chão com o urso nos braços, cantando uma música suave, sem melodia clara. Ana não reconheceu, mas sentiu um arrepio percorrer a espinha.
— Posso entrar? — perguntou, tentando sorrir.
Tereza a olhou com uma expressão neutra, depois deu de ombros.
— Esse quarto é meu. Mas você pode olhar. Se não mexer em nada.
Ana entrou devagar.
— Seu urso tem nome?
— Fredinho. Ele me protege.
— De quê?
A menina apertou o urso contra o peito e respondeu com uma naturalidade que fez Ana se calar:
— Das coisas que moram aqui.
Ana tentou manter o tom leve.
— E o que mora aqui, Tereza?
A menina olhou para ela com olhos sérios demais para sua idade.
— Você vai descobrir. Todo mundo descobre.
Antes que Ana pudesse perguntar mais, a porta bateu atrás delas com força. Ela se virou, assustada, e viu Violeta no corredor, com um sorriso cínico nos lábios.
— Ops — disse Violeta. — Achei que você já tivesse ido embora.
No almoço, Ana encontrou seu copo de leite salgado. O prato de comida com pimenta escondida. A escova de dentes com as cerdas cortadas. Na escada, sabão nos degraus. Rafael espalhou brinquedos de propósito. Rafaela riscou o livro que Ana deixou sobre a cama. Nicolas apenas a observava de longe, calado, com olhos que pareciam calcular.
Helena e Maurício nunca estavam por perto nos momentos certos. E quando ela contava algo, os filhos negavam com precisão. Como se fossem treinados.
Na terceira vez que reclamou, Helena disse:
— Eles só estão tentando testar seus limites. Logo vão te aceitar, Ana. Só precisa de paciência.
Mas Ana já tinha entendido: não era só sobre os irmãos.
Era sobre ela.
Ela incomodava a casa.
E a casa, de algum modo, respondia aos sentimentos dos que viviam ali.
Naquela noite, enquanto escovava os dentes no banheiro, viu algo estranho no espelho: uma sombra se movendo atrás dela, onde não havia ninguém.
Virou-se rápido. Nada.
Mas quando olhou novamente, o espelho já estava embaçado, mesmo sem vapor. E uma única palavra parecia surgir, como traço de dedo invisível:
“Chave.”
No jantar, Tereza não parava de encará-la. À mesa, com o rosto sujo de sopa, a menina sussurrou entre uma colherada e outra:
— Você não vai durar muito tempo aqui.
Ana forçou um sorriso.
— Acha mesmo?
Tereza balançou a cabeça.
— Acho que você vai durar... mais do que devia.
Naquela noite, no quarto, Ana trancou a porta. Sentou-se na beira da cama e encarou o colar. A pedra azul brilhava de forma quase imperceptível, como se estivesse pulsando com o próprio pensamento dela.
Olhou pela janela. A névoa do lado de fora cobria o parque como um véu. Mas por entre as brumas, ela jurava ter visto uma luz se acender na roda-gigante. Só por um instante.
Um lampejo.
Um chamado.
Fechou os olhos.
E sussurrou:
— Eu não vou desistir.
E, pela primeira vez desde que chegou, sentiu que algo — ou alguém — a escutava de volta.
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Atualizado até capítulo 39
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