Capítulo 1 - Entre Muros e Silêncio

O orfanato era um lugar onde os dias pareciam se repetir infinitamente. Os mesmos horários, os mesmos sons, os mesmos rostos — alguns indo embora, outros chegando com olhos assustados e pouca bagagem. Ana já não contava mais quantas vezes vira aquelas malas pequenas passarem pela porta. As crianças entravam com medo e esperança, e saíam com promessas que nem sempre se cumpriam.

Ela, por outro lado, ficava.

Seu quarto era o mesmo desde os sete anos. As paredes, descascadas e úmidas, tinham manchas que pareciam mapas de lugares esquecidos. Havia um armário baixo, uma cama de madeira que rangia toda noite, e uma pequena prateleira onde guardava os únicos livros que realmente gostava — histórias de lugares mágicos, reinos distantes e pessoas que encontravam segredos em mundos paralelos.

Era nesses livros que ela se refugiava quando as outras meninas cochichavam sobre ela, sobre o colar esquisito que nunca tirava, ou sobre os pesadelos que a faziam acordar arfando.

Dona Ivone dizia que Ana tinha alma antiga. Que havia algo no olhar dela que não combinava com a idade. Talvez fosse o silêncio. Ou a forma como ela olhava para as janelas, como se esperasse que algo — ou alguém — aparecesse.

Mas só dois meninos realmente a entendiam.

Eduardo era alto, magro, e estava sempre com fones de ouvido pendurados no pescoço. Ele dizia que a música era sua forma de sobreviver. Tinha olhos tristes, mas sorriso fácil. Fazia piadas quando as coisas ficavam ruins e sempre arranjava um jeito de proteger os menores.

— Você devia ter nascido numa banda de rock — ele dizia, fazendo careta. — Ou num planeta onde as pessoas não falam, só cantam.

Ender, por outro lado, era o oposto. Calado. Observador. Forte para a idade, mas sem arrogância. Seu pai fora preso por assassinato, e aquilo o seguia como uma sombra. Mas com Ana, ele era diferente. Atento, paciente. Costumava sentar com ela no jardim, onde ficavam em silêncio, apenas ouvindo o vento entre as árvores secas.

— Você sente quando o mundo fica mais pesado? — ele perguntou uma vez.

Ana assentiu. E foi tudo. Eles se entendiam assim.

No fundo do orfanato havia uma árvore torta, com raízes expostas e um galho que lembrava um braço estendido. Era ali que Ana ia nos dias em que os sonhos a deixavam inquieta. Sentava-se no chão e segurava o colar com força, esperando que a pedra azul dissesse alguma coisa.

Às vezes, sentia calor vindo dela. Outras vezes, ouvia algo — um eco, uma palavra indistinta. Mas sempre, sempre, via a roda-gigante. Mesmo acordada. Como se ela estivesse presa à sua mente.

Certa tarde, enquanto lia perto da árvore, Eduardo se aproximou com um sanduíche escondido no bolso.

— Peguei da cozinha. Pra você. Só porque hoje parece um daqueles dias em que o céu tá prestes a cair.

Ana sorriu.

— Tá mesmo. Você também sentiu?

— Eu sempre sinto quando você sente. Estranho, né?

— Talvez não seja.

— Você é mais estranha que eu.

Ela deu de ombros.

— E você é o único que me entende.

Naquela noite, o refeitório estava mais silencioso que o normal. Ender comia devagar, os olhos fixos na porta. Eduardo fazia batidas com os dedos na mesa. E Ana... Ana olhava para o teto, onde uma rachadura nova desenhava uma curva estranha — quase como um símbolo.

Depois, no dormitório, o sonho voltou. O parque. A voz. O rapaz no carrossel. Mas dessa vez, algo mudou.

Antes de acordar, ele disse:

— Está perto agora. Mas você precisa escolher. Luz ou sombra.

Ana se sentou na cama de supetão. A respiração descompassada. O colar ardendo contra o peito.

Ela não sabia o que significava aquilo. Mas sentia, com todas as células do corpo, que algo estava para acontecer.

E quando, na manhã seguinte, Dona Ivone a chamou em sua sala e disse que um casal estava interessado em adotá-la, Ana não ficou surpresa.

Ficou em silêncio.

— É um casal estranho — confessou Ivone, com o cenho franzido. — Educados, mas... você vai entender quando os vir. Têm filhos, vários. E moram numa casa grande, afastada da cidade. Mas disseram que, quando viram sua foto, sentiram algo.

Ana concordou com o olhar distante.

Como se já soubesse.

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Comments

Sōsuke Aizen

Sōsuke Aizen

Fiquei tão comprometida com a história que ela me consumiu por completo.

2025-05-19

1

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Capítulos
1 Prólogo - A Voz na Névoa
2 Capítulo 1 - Entre Muros e Silêncio
3 Capítulo 2 – A Casa da Colina Nebulosa
4 Capítulo 3 – A Casa Que Observa
5 Capítulo 4 – Ecos nas Paredes
6 Capítulo 5 – Uma Festa Bem Intencionada
7 Capítulo 6 – Parque dos Ecos
8 Capítulo 7 – Vozes entre sombras
9 Capítulo 8 - A Sombra
10 Capítulo 9 - Presenças Invisíveis
11 Capítulo 10 – O Quarto Fechado
12 Capítulo 11 – A Inauguração
13 Capítulo 12 – Sob a Pele
14 Capítulo 13 – Chamas Antigas
15 Capítulo 14 – O Eco da Queda
16 Capítulo 15 – Vozes Contra a Sombra
17 Capítulo 16 – Ecos da Primeira Queda
18 Capítulo 17 – Vozes na Escuridão
19 Capítulo 18 – Entre Beijos e Ruínas
20 Capítulo 19 – Ecos Antigos
21 Capítulo 20 – A Marca e o Laço
22 Capítulo 21 - O Coração da Memória
23 Capítulo 22 - Ecos de Alina
24 Capítulo 23 - Entre Sombras e Promessas
25 Capítulo 24 - Verdades Queimam Como Brasa
26 Capítulo 25 - O Eco do Véu
27 Capítulo 26 - A Primeira Tempestade
28 Capítulo 27 - Fragmentos de Luz e Sombra
29 Capítulo 28 - Memórias que Não São Minhas
30 Capítulo 29 - Sombras Entre Nós
31 Capítulo 30 - Entre Ecos do Tempo
32 Capítulo 31 - Coração Entre Mundos
33 Capítulo 32 - O Preço da Travessia
34 Capítulo 33 - O Silêncio que Precede
35 Capítulo 34 - Entre Ecos e Labirintos
36 Capítulo 35 - A Verdade Esquecida
37 Capítulo 36 - Sombras em Casa, Luz na Perseguição
38 Capítulo 37 - Sentença de Luz e Sombra
39 Capítulo 38 - Fragmentos de Luz
Capítulos

Atualizado até capítulo 39

1
Prólogo - A Voz na Névoa
2
Capítulo 1 - Entre Muros e Silêncio
3
Capítulo 2 – A Casa da Colina Nebulosa
4
Capítulo 3 – A Casa Que Observa
5
Capítulo 4 – Ecos nas Paredes
6
Capítulo 5 – Uma Festa Bem Intencionada
7
Capítulo 6 – Parque dos Ecos
8
Capítulo 7 – Vozes entre sombras
9
Capítulo 8 - A Sombra
10
Capítulo 9 - Presenças Invisíveis
11
Capítulo 10 – O Quarto Fechado
12
Capítulo 11 – A Inauguração
13
Capítulo 12 – Sob a Pele
14
Capítulo 13 – Chamas Antigas
15
Capítulo 14 – O Eco da Queda
16
Capítulo 15 – Vozes Contra a Sombra
17
Capítulo 16 – Ecos da Primeira Queda
18
Capítulo 17 – Vozes na Escuridão
19
Capítulo 18 – Entre Beijos e Ruínas
20
Capítulo 19 – Ecos Antigos
21
Capítulo 20 – A Marca e o Laço
22
Capítulo 21 - O Coração da Memória
23
Capítulo 22 - Ecos de Alina
24
Capítulo 23 - Entre Sombras e Promessas
25
Capítulo 24 - Verdades Queimam Como Brasa
26
Capítulo 25 - O Eco do Véu
27
Capítulo 26 - A Primeira Tempestade
28
Capítulo 27 - Fragmentos de Luz e Sombra
29
Capítulo 28 - Memórias que Não São Minhas
30
Capítulo 29 - Sombras Entre Nós
31
Capítulo 30 - Entre Ecos do Tempo
32
Capítulo 31 - Coração Entre Mundos
33
Capítulo 32 - O Preço da Travessia
34
Capítulo 33 - O Silêncio que Precede
35
Capítulo 34 - Entre Ecos e Labirintos
36
Capítulo 35 - A Verdade Esquecida
37
Capítulo 36 - Sombras em Casa, Luz na Perseguição
38
Capítulo 37 - Sentença de Luz e Sombra
39
Capítulo 38 - Fragmentos de Luz

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